Depois da separação

Hansjörg Schertenleib dispensa soluções fáceis para dizer o que acontece após o abandono
Hansjörg Schertenleib, autor de “A orquestra da chuva”
01/01/2012

Separações são um bom tema para a literatura. Separações de casais, separações de pais e filhos, de pessoas que são obrigadas a separar-se de suas coisas, de suas casas, de seus países, separações obrigadas por lei, seja lá por qual razão. A partir da separação, pode-se falar também do abandono provocado por ela. Quem ficou, quem foi, quem deixou, quais são seus sentimentos? Separação e abandono estão no centro de A orquestra da chuva — mais recente livro do suíço Hansjörg Schertenleib lançado no Brasil.

O romance conta a história de duas personagens. A primeira é um escritor suíço que se auto-exilou na Irlanda com sua esposa, seu carro e o papagaio dela dez anos antes do início da narrativa e que, há duas semanas e quatro dias, foi abandonado por sua mulher. Esse homem traumatizado acaba conhecendo Niamh, uma irlandesa cerca de vinte anos mais velha que ele, a segunda personagem principal do livro. Niamh convence o escritor a escutar a história dela para que ele a transforme em um livro. Dos encontros nasce uma amizade profunda que irá transformar a vida do escritor.

Schertenleib, acertadamente, dá mais pistas do que fatos concretos sobre o que aconteceu com o escritor que o levou até aquele momento no início do livro — “Duas semanas e quatro dias após minha mulher me deixar, conheci Niamh”. Através de sentimentos que o escritor revela quando nos conta seus pensamentos, em flashbacks velozes de momentos decisivos, montamos um quadro aproximado do que deve ter acontecido, tal qual uma pintura impressionista. E não é necessário saber os fatos com detalhes, ainda que nossa veia voyeurística peça. Sean, apelido que Niamh dá ao escritor, é um homem amargurado.

Já de Niamh temos uma fotografia em alta resolução. Sean, de gravador em punho, vai colhendo os depoimentos de Niamh desde a sua infância na Irlanda até o retorno ao seu país, passando pelo início da vida adulta na Inglaterra e de sua longa estada na Alemanha. Niamh é um “livro aberto”, sem segredos para Sean e para os leitores. É uma mulher que sofreu também alguns abandonos, teve que abandonar também, mas sempre fez o que julgou correto e não se arrepende de nenhuma decisão tomada, nem mesmo da solidão em que vive.

A diferença de estilos ao narrar a vida de cada uma das personagens gera certo desconforto no início da leitura. Começamos lendo a vida de Sean no presente, depois pulamos para a vida de Niamh no passado, voltamos a Sean no presente, e assim vamos até o momento em que Niamh não tem mais histórias para contar e entre ela e Sean existe já uma amizade. Se no início nos parece algo um tanto incômodo, depois entendemos que esse vaivém serve a um propósito. Cada pedaço da história de Niamh altera um pouco a percepção de Sean a respeito de sua separação e de si próprio. E como o corte entre uma história e outra é bem claro, não há confusão entre elas, vamos construindo cada personagem separadamente para tê-los juntos no fim do livro.

Olhando superficialmente, são duas histórias relativamente comuns e que poderiam muito bem ter acontecido com qualquer um. Aliás, fica uma dúvida se Sean não é o alter ego de Schertenleib, com quem divide um pedaço de sua biografia. Mas isso não é importante. O que importa é que Schertenleib, sem criar pirotecnias para seus personagens, coloca duas pessoas altamente verossímeis conversando sobre si próprias. É dessa conversa que cada um deles emergirá transformado em uma pessoa melhor. E como Schertenleib trata seus personagens com sinceridade, a partir do momento em que nos vemos cativados por eles, dificilmente largaremos o livro antes de concluir a leitura.

Há momentos muito poéticos. Dois deles são particularmente bonitos. O primeiro é quando se fala da remoção da baleia morta encalhada na praia, em que uma multidão se junta como que para dar adeus ao animal morto. O segundo é já próximo ao fim da narrativa, quando a chuva sobre uma mesa cheia de canecas montada por Niamh gera uma música suave, quase mágica — vem daí o título do livro, A orquestra da chuva. Sem apelar para a fantasia, Schertenleib consegue mostrar a beleza que pode existir no mundo mesmo quando internamente estamos em frangalhos.

Os inomináveis
Se em A orquestra da chuva Schertenleib fala da redenção pessoal, em seu romance anterior publicado no Brasil, Os inomináveis (tradução de Marcelo Rondinelli, Editora Grua, 2008, 288 págs.), ele aborda a perdição. Nesse romance, vencedor de diversos prêmios na Europa logo após seu lançamento lá, em 2001, Schertenleib conta a história de Christta Notter, uma suíça de cerca de 40 anos, integrante de uma seita fundamentalista cristã que programa alguns atentados contra pessoas da Igreja Católica Romana.

Christta conta sua vida por meio de uma carta enviada à filha que ela abandonara ainda jovem, logo após o nascimento. A carta é escrita mesmo que Christta não saiba quem sua filha é ou onde ela vive, e também por Erich, um alemão que conhece Christta e com quem tem um relacionamento intenso, porém breve, até que é abandonado pela suíça. Nessa carta relato, descobrimos os porquês das escolhas de Christta. Por que ela abandonou sua filha? Por que entrou em uma seita liderada por um maluco que acreditava ser a reencarnação do Cristo? Por que largou Erich e não escolheu outra vida?

Schertenleib também fala de separações e abandonos, mas utilizando outro viés. Se em A orquestra da chuva há esperança, em Os inomináveis ela não existe. Ali há mais doença que cura, há um senso de fatalidade, de que nada pode ser consertado ou perdoado, o que foi feito não pode ser desculpado. E apesar da questão religiosa ser o motivo de fundo da trama, ela não obscurece o que é mais importante — a vida de Christta. Na prática, a religião explica algumas escolhas da protagonista, mas não assume o papel mais importante do livro. Assim, novamente sem lançar mão de recursos fantásticos, Schertenleib constrói uma narrativa fascinante, um thriller com um final inesperado.

Schertenleib deve ter lá as suas questões a resolver no que diz respeito a abandonos e separações, pois esses temas são bem fortes em ambos os trabalhos. Os inomináveis é superior a A orquestra da chuva, pois desde o início ele prende o leitor à sua trama. Em A orquestra demora um pouco para pegarmos o ritmo do vaivém das histórias de Niamh e Sean. Uma vez familiarizado com esse jogo, estamos presos a ele. E o autor mostra, com esses dois trabalhos, que uma boa história bem contada é muito mais importante que invenções estilísticas ou truques narrativos.

A orquestra da chuva
Hansjörg Schertenleib
Trad.: Marcelo Rondinelli
Grua
248 págs.
Hansjörg Schertenleib
Nasceu em Zurique, na Suíça, em 1957. Ele trabalhou como tipógrafo e designer. Formado pela Academia de Artes Aplicadas de Zurique, editou a revista literária orte entre 1980 e 1984. Nos anos de 1992 e 1993 foi o autor residente do Teatro da Basiléia (Basel). Em 1996, mudou-se para Donegal, na Irlanda, e desde então alterna sua residência entre esse país e a Suíça. Além de romances, Schertenleib escreve também poesia, peças de teatro e peças para rádio. Um dos temas constantes de seu trabalho é a fuga dos confins de sua Suíça natal, além da sensação de “estar na estrada”. Os inomináveis ganhou o prêmio de melhor livro da Cidade de Zurique, em 2001, da Cidade de Berna, de 2002, e da Fundação Schiller, em 2001. O texto também ganhou uma versão para a TV alemã em 2002. Sua obra já soma 16 livros, sendo que o mais recente, Cowboysommer, foi lançado na Europa em 2010.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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