Dentro de um mundo combinatório

Nos contos de "Ogivas", Débora Ferraz exige um leitor ativo ao explorar diferentes tipos de violência por meio de múltiplos arcos narrativos
Débora Ferraz, autora de “Ogivas” Foto: Bruno Vinelli
01/07/2022

Tem aqueles livros que te obrigam a voltar toda hora no texto, reler uma ou outra passagem com calma, pesquisar termos ou conexões inesperadas, conferir citações, desvendar intertextualidades. Dependendo do que se espera da literatura, isso pode ser muito chato ou fascinante. No meu caso, é exatamente o que busco num livro: alargamento da visão e diálogo com outros escritos.

Desde o título, Débora Ferraz traça uma geometria enigmática e instigante a partir da interseção de múltiplos arcos narrativos. A imagem final, porém, só será arrematada na cabeça de cada leitor e cada leitora, num jogo de apropriação e recriação no qual o narrado se completa em sua recepção. É perturbador e dá trabalho, mas vale a pena porque amplia a própria capacidade conceptiva. Ou, para usar um termo cunhado por Elvira Vigna, o leitor aqui é coautor.

Assim como Vigna, Débora exige um público interessado neste tipo de literatura — o texto é espesso, mas não inacessível. E isso se deve ao seu estilo. A linguagem vai na contramão da estrutura multifacetada. É direta e lacônica, pautada na oralidade. E a força de tração do texto está exatamente na perspicácia com que a autora trava esse embate entre complexidade na arquitetura da narrativa e aridez da linguagem.

Quanto à temática, os dezessete contos breves abordam as diversas formas de violência cotidiana. Segundo a autora, Ogivas é o seu livro mais bélico, as narrativas vão ao encontro da ideia de que “a arte não foi feita para ser inofensiva”. E sua escrita é, de fato, incômoda. Mas esse incômodo está sobretudo ligado ao trato formal de um texto forjado em cortes bruscos, mudanças abruptas de perspectiva e na exploração exaustiva de inúmeras referências literárias.

Impossibilidades
O primeiro conto, intitulado Um conto de terror, já abre com uma citação de Stephen King (o que pode ser uma pista ou um despiste) — autor que, por sua vez, é também um grande explorador da técnica da intertextualidade. Neste conto, escrito num estilo ágil, enganosamente leve (como o do próprio King), uma mulher discute com o seu sócio as possibilidades de salvar a firma comum, que se encontra à beira da falência.

O texto é entrecortado pelo relato paralelo de uma senhora que fala de um “trabalho” espiritual para trazer de volta qualquer coisa perdida. As camadas narrativas se sobrepõem sem aparente transição, aos pulos. O interessante aqui não é tanto a história em si, mas a maneira como ela é contada por meio do vaivém no discurso e, sobretudo, do que é deixado de fora. Esses recursos narrativos falam tanto quanto o texto da desestabilização na relação dos protagonistas, de sua rivalidade contida, assim como dos conflitos entre a história e a sua narração. Porque, se há infinitas contingências que trouxeram as personagens até ali (e a autora a elas), sempre algo ficará de fora e qualquer reivindicação de completude seria uma violência contra o caráter fragmentário das biografias (e do texto).

Essa impossibilidade de formular tudo é inclusive tematizada abertamente em vários dos contos, criando uma metanarrativa que abre o texto para a sua própria feitura e problematiza o contar em si, como em Pedra, papel e tesoura. Aqui, a narradora onisciente reporta o caso trágico de Lorraine, uma mulher morta por bala perdida. O relato é feito por voltas, desvios, no vaivém entre o incidente real e a reflexão sobre a sua narração:

Eu digo que Lorraine caminha como se dissesse, Está vendo?, como se apontasse, Lá vai ela, viu? Passando por nós com seus óculos no rosto e seus projetos na cabeça. Posso acrescentar detalhes, até. Dizer, por exemplo, que carrega livros. Que veste a farda do colégio. Mas se eu for bem-sucedida nesta minha intenção, ainda assim há coisas que não conseguirei explicar. O peso, por exemplo. Ou por que Lorraine morre no fim do conto?

Arme e efetue.

Violências
Aqui, de novo, o leitor coautor é convocado a juntar as pontas. E essa abordagem é mantida de forma consequente por todos os contos. A autora flexiona o tema das violências em suas diversas configurações, sempre experimentando com a forma que mais se aproprie à respectiva história.

Há a violência internalizada em There’s a light that never goes out, um conto composto em torno da canção homônima da banda The Smiths, ainda que a autora não se sinta obrigada a nenhuma forma de fidelidade com o seu modelo. Neste conto, ela sobrepõe de maneira tragicômica a crônica de uma orgia e o monólogo interior da protagonista, que, enquanto faz sexo com os outros, pensa o tempo todo na avó que está morrendo em casa.

Em Inocência, emerge um tópico controverso e pouco tratado na literatura: a violência infantil, a crueldade em estado bruto das crianças.

Há também a violência doméstica contra mulheres, retratada em Dois perdidos e um dia branco, no qual dois amigos, um homem e uma mulher, dividem um apartamento e, um belo dia, ele a estupra inesperadamente.

Já em Você, um homem lutando contra o tabagismo se divide em duas personalidades, é ele próprio e é o outro, primeira e segunda pessoa do discurso, o eu e o Você do conto, que tenta diversas táticas para não pensar no cigarro, inclusive esse dividir-se. E, como num jogo de espelhos infinitos, também o conto se divide e se multiplica, reaparecendo como uma variação do mesmo tema, algumas páginas mais tarde, com o título Você 2, sendo que nesta segunda versão a questão moral é desviada do indivíduo à sociedade.

Espelhamento
Essa estratégia de espelhamento é retomada em No fim e No fim 2, dois contos extremamente instigantes tanto pelas reflexões contextuais que provocam como do ponto de vista da relação entre forma e conteúdo. No primeiro, a história de um casamento que não aconteceu é contada de uma perspectiva posterior no futuro do pretérito, através de um texto dentro do texto, refletindo o que poderia ter acontecido se o encontro tivesse de fato se concretizado, num jogo de possibilidades que as potencializa e reflete igualmente os limites da história enquanto narrativa. Na segunda variante, é aprofundada a reflexão sobre a consciência do fim enquanto elemento transformador do começo. E, de novo, o tema aqui é consoante com sua apresentação, a forma é parte essencial do conteúdo:

O fim de algo, não é o fim de tudo, e ficam ainda largados no tempo, e na página, dois personagens ímpares, como conjuntos unitários que não podem se livrar da solidão. Essa é a lógica, certo? Se o texto já começa no fim, com eles juntos, e tudo dando certo, é claro que vai terminar no começo, quando algo dá errado e eles ficam separados.

Só não precisa pensar nisso por enquanto.”

No ensaio O fascínio das palavras, Julio Cortázar afirma a importância do lúdico enquanto “uma das armas centrais pelas quais o ser humano se conduz ou pode se conduzir pela vida afora”. Segundo ele, “o homem que habita um mundo lúdico é um homem colocado dentro de um mundo combinatório, de invenção combinatória, que está continuamente criando formas novas”.

Em Ogivas, Débora Ferraz brinca com as muitas possibilidades de narrar, circundando seu tema — as diferentes formas de violência — como se ela se movimentasse em torno de suas histórias, vendo-as sob diferentes ângulos, decompondo-as e registrando os seus elementos em planos sucessivos e superpostos. Ou seja, ela não só narra, mas nos guia para dentro da sala de máquinas da narração, possibilitando que vejamos as causalidades que levaram às histórias e seus relatos, e essa permeabilidade nos dá a distância necessária para a reflexão para além da empatia.

Ogivas
Débora Ferraz
Caos & Letras
196 págs.
Débora Ferraz
Nasceu em Serra Talhada (PE) e está radicada em João Pessoa (PB), onde é cofundadora da escola de escrita Edícula Literária. Estreou na prosa aos 16 anos, com Os anjos (2003), e publicou em várias coletâneas, entre elas Geração 2010, o sertão é o mundo. É autora do romance Enquanto Deus não está olhando (2014), vencedor do Prêmio Sesc e do São Paulo de Literatura.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho