Delírios amazônicos

Ao colocar molho inglês no tucunaré, Márcio Souza erra a mão em O fim do Terceiro Mundo
Márcio Souza, autor de “O fim do Terceiro Mundo”
01/04/2008

A perfeição não existe. Logo, não podemos exigir de quem quer que seja que exerça qualquer função de maneira excelente sempre. Somos passíveis de erros, com certeza cometemos vários erros, sempre. Logo, não podemos pedir aos artistas que toda obra seja uma obra-prima, que cada trabalho seja um legado para a humanidade. Durante a vida produtiva, os bons artistas cometerão ótimos trabalhos, mas poderão eventualmente escrever algo que será apenas uma referência na relação de sua obra.

Este parece ser o caso de O fim do Terceiro Mundo, oitavo romance do manauara Márcio Souza. O escritor, um dos melhores autores contemporâneos do Brasil e um dos mais traduzidos no exterior, é famoso principalmente por Mad Maria, a história da ferrovia Madeira-Mamoré que se transformou em minissérie na Globo; Galvez, o imperador do Acre, um delírio sobre um delirante que declara o Acre independente do Brasil à época do nascimento e consolidação da república brasileira; e Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro, uma tetralogia em que Márcio Souza conta a saga épica daqueles que conquistaram o Norte do Brasil, quase uma versão nortista de O tempo e o vento. Isso sem contar seus outros livros e peças de teatro, muitos deles traduzidos em outros idiomas e com resultados significativos no exterior.

Márcio Souza tem como premissa básica de sua obra contar as coisas e as pessoas da Amazônia, sua terra natal. E ele sabe dosar muito bem a exuberância da floresta com a peculiaridade de cada um de seus personagens. Na maioria de seus romances, o exótico não é explorado como o prato principal da história. Tampouco deixa de ser um figurante, tamanha é a importância da floresta no modus vivendi de seus personagens. No entanto, este não parece ser o caso de O fim do Terceiro Mundo.

Talvez a narração de um fato doméstico ajude a esclarecer o leitor sobre o que tenho a dizer. Minha esposa viu o livro sobre a cabeceira de nossa cama. Ela leu a primeira página, se interessou, e foi ler a orelha do livro. Após terminada a leitura da orelha, ela me disse: “Nossa, eu li a primeira página e parece ser um livro muito bom, apesar de a história descrita ali na orelha ser um tanto quanto esdrúxula”. Este é um bom resumo do livro. A história é muito bem escrita, tão boa quanto os outros trabalhos de Márcio Souza, mas a trama é por demais esdrúxula.

Continuação
O começo do livro é bacana, com uma ótima idéia. No romance, um escritor, que pode muito bem ser o próprio Márcio Souza, já que a história é contada na primeira pessoa, mente a um jornalista quando é perguntado sobre o que ele escreve naquele momento. Sem saber o que responder, pois não estava escrevendo coisa alguma naquele instante, ele diz que está construindo uma continuação do livro O mundo perdido, de Sir Arthur Conan Doyle, lançado originalmente em 1912. Se no livro do criador de Sherlock Holmes o professor Challenger, um zoólogo inglês, viaja até a Amazônia e lá descobre um pedaço do planeta em que ainda há dinossauros, na continuação do escritor/Souza a neta do zoólogo, a jornalista Jane Challenger, viaja até a Amazônia e descobre espécimes de capitalistas considerados extintos na Inglaterra desde o século 18. De retorno à Inglaterra, ela tenta emplacar a pauta na revista onde trabalha, a New Economist, de propriedade de Lord Delamare, um britânico como imaginamos o estereótipo deles, aos 90 anos.

Até aí ainda vamos, acompanhamos o raciocínio de Souza. Resumindo, temos duas tramas: a do escritor em si que inventa uma trama, e em seguida os personagens da trama inventada criando força e emergindo para uma história própria, paralela. O escritor vai, ao longo do livro, jogando seus personagens, a princípio inexistentes mas que ganham vida após a sua verbalização, em diversas outras tramas e subtramas.

Mas parece que, logo após se estabelecer que há duas histórias, o autor começa a sofrer do delírio amazônico, causado pela exuberância de cores e pelo calor intenso e eterno da região. No livro, o personagem-escritor fala de amigos e conhecidos e que, ao viajarem para a região, sofreram com o calor e com os bichos que não perdoam ninguém, a não ser os nativos já acostumados com as características do local. Isso porque uma série de devaneios acomete a narrativa, embaralhando tudo de uma maneira tão confusa que fica difícil explicar o que vem a seguir.

A história de Jane Challenger ganha a companhia de seu amigo de infância Lester, do seu mordomo de origem indígena Henry, do editor da New Economist Spender, de Pietro Pietra Jr., neto de Venceslau Pietro Pietra, personagem de Macunaíma, de Mário de Andrade, de um comando terrorista para lá de estranho chamado Jihad Jívaros, de duas índias milenares e outros indígenas locais de idades mais plausíveis. Ao mesmo tempo, quando o escritor-personagem empaca na história, ele a deixa para então começar a contar a sua história, de onde está, o que faz. Isso inclui uma viagem de trem a uma feira literária em Berlim Ocidental (estamos nos tempos da Guerra Fria) na companhia de Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles e João Ubaldo Ribeiro, que dão uma “palhinha” na história. Nestes momentos, o escritor/personagem é assombrado pelos fantasmas de seus personagens, que aguardam ser libertados para poder continuar a sua trama.

Divagação
O grande problema de O fim do Terceiro Mundo é que não há um equilíbrio entre as duas narrativas. Em alguns momentos, Souza parece perder-se dentro de sua trama, e acaba divagando mais do que seria necessário. Um ótimo exemplo disso acontece quando ele fala do trabalho de um escritor chileno inventado, Juan Sender. Souza não apenas fala de Sender e de seu estranho hábito de morder quem quer que lhe pergunte sobre o que está escrevendo, como fala do suposto livro que Sender escreve, este a respeito de um inexistente escritor russo chamado Leopold Kassov. Esta sub-subtrama toma um tempo a meu ver enorme do livro, e não acrescenta nada à história a não ser teorias sobre o fazer literário que ali não são necessárias. São poucas páginas, da 325 à 331, que demoram a ser percorridas. Há ainda uma cena pouco plausível entre Jane Challenger e Pietro Pietra Jr., em que os gestos são acompanhados de diálogos para lá de incoerentes com o momento.

Toda essa sobreposição de temas e falta de coerência acaba prejudicando o que poderia ser uma bela história. O fim do terceiro mundo mencionado no título aconteceria com a construção de uma mega usina hidrelétrica no meio da Amazônia (qualquer semelhança com os tempos atuais pode não ser uma mera coincidência). A usina provocaria mudanças climáticas tão grandes em todo o planeta que fatalmente destruiriam o terceiro mundo. E da construção da usina participariam os capitalistas ingleses extintos mencionados por Jane Challenger. Só aí já teríamos uma ótima trama a ser explorada e que continua superatual, basta ver o desmatamento recorde dos últimos meses na Amazônia e o interesse mundial em fazer alguma coisa para interrompê-lo.

Infelizmente Márcio Souza não parece tão comprometido em criar coerência, pelo menos não nesta história, nem de deixá-la mais atraente. O próprio autor escreve, na última página do livro, um elogio aos insistentes: “Pois então que fiquem sabendo os leitores que ousaram chegar até aqui, depois de enfrentar tantos contratempos e as excessivas digressões, demonstrando paciente perseverança e condescendência admirável, que neste preciso e exato momento as correntes do mar levam entre os risos e as procelas de suas mentes desvairadas, tendo atravessado sem perigos ou arranhões a corrente do amarelo Rio das Amazonas ou Mar Dulce espanhol, e perdidos em algum lugar do Oceano Atlântico sem nenhuma lei ou comando e à deriva, os desafortunados passageiros do belo transatlântico chamado Leviatã, oh! moderno bergantim, e sendo assim, fim”. Se o escritor sabe que houve excessivas digressões e vários contratempos, quem somos nós para negar?

Só não se deixe levar por este livro, se for o primeiro de Márcio Souza que lhe cai em mãos. O resto da obra do escritor manauara é ótimo. Aproveite que a Record está relançando toda a sua obra, pule O fim do Terceiro Mundo, e delicie-se com literatura de altíssima qualidade.

O fim do Terceiro Mundo
Márcio Souza
Record
368 págs.
Márcio Souza
Nasceu em Manaus, em 1946. Formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, começou a vida profissional no cinema, como crítico, roteirista e diretor. Com uma sólida carreira como dramaturgo, é autor de peças como Ação entre amigos e Tem piranha no Pirarucu. Galvez, o Imperador do Acre marca a estréia literária em 1978. Sua carreira como escritor já conta com mais de 20 títulos, entre eles Mad Maria e a tetralogia Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho