Quando se trata de literatura, o tĂtulo de uma obra nos antecipa, muitas vezes, o que naquele livro pode nos sensibilizar. Começa aĂ o estranhamento que sentimos ao nos deparar com o curioso e incomum Baldomero. A tĂ©cnica, que consiste no emprego de um nome prĂłprio para batizar o romance, contudo, nĂŁo Ă© nova nas letras, vide Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, ou MacunaĂma, de Mário de Andrade. De antemĂŁo, tĂtulos assim, embora envoltos de certo enigma, nos informam que estamos diante de uma narrativa centrada em uma personagem principal, o que se repete no Baldomero, romance de Leandro Rafael Perez.
É este inusitado nome, de certo pouco usual nos cartĂłrios, que anuncia uma aparente proposta: apresentar uma narrativa estranha em relação ao que estamos acostumados a encontrar nas estantes. Baldomero Ă© uma trajetĂłria errante. Nosso protagonista Ă© o tĂpico locutor do anjo torto de Drummond, um gauche na vida. Mas, nos caminhos do romance, surgem muitas armadilhas.
Formalmente, ele flerta com tons experimentais. Contudo, permanece dentro do que podemos chamar de narrativa convencional, o que se refere ao modelo empregado pela maioria dos autores da leva do século 21. Na construção do enredo, a problemática é maior. Quando se atira em uma louca desvairada, é preciso guiar o leitor para dentro desta aventura. Caso contrário, o que resta é apenas uma expressão confusa.
O tĂtulo completo do livro ajuda a iluminar parte da questĂŁo: Baldomero (ou Babá, para os Ăntimos, inexistentes). De fato, a solidĂŁo, chamada de o mal moderno, está no cerne da literatura desde as suas origens. Mas, do sĂ©culo 20 em diante, o caso se torna ainda mais crĂ´nico. PodĂamos esperar, assim, que Baldomero fosse uma meditação sobre o isolamento em plena dĂ©cada de 2000. Afinal, somos avisados que se trata de uma histĂłria prĂ©-linha amarela — metrĂ´ que une o centro de SĂŁo Paulo (desde a Estação Luz) ao Campus da Universidade de SĂŁo Paulo (no ButantĂŁ) — cujo inĂcio das atividades se deu em 2010.
Essa solidão ganha novos contornos ao se considerar aspectos da sexualidade do protagonista. Baldomero é um homem gay nos seus vinte e tantos anos. Busca por um namorado ou, na pior das hipóteses, alguém com quem possa dividir a intimidade. Para ele, isso é representado pela permissão de chamá-lo por um apelido: Babá, dado por um de seus amantes casuais. Nessa trajetória sentimental que vem antes do surgimento do Grindr — aplicativo de encontros focado em homens homossexuais — podemos ver a superficialidade das relações, sempre efêmeras e desajustadas, do protagonista. Baldomero teria muito a ganhar focando apenas nessa odisseia sentimental.
A exploração do universo LGBT, na Ă©poca conhecido como GLS, Ă© um dos pontos positivos do romance. Com toadas de humor, que em certas passagens beiram o absurdo, Baldomero navega nos mares dos romances passageiros. O desarranjo se evidencia nos encontros sexuais do protagonista, repletos de desconforto. A performance de masculinidade do personagem diz muito sobre a socialização do mundo gay, semelhante Ă de outros contemporâneos como o Diga que nĂŁo me conhece, de Flavio Cafiero. Há tambĂ©m certa nostalgia, com o retrato das noites entre a Rua Augusta e o Largo do Arouche no perĂodo em que o livro se passa, que trazem tons de uma outra dĂ©cada.
Estudante de geografia na Universidade de SĂŁo Paulo, Baldomero vive o aperto tĂpico de muitos universitários. Mal remunerado no emprego de telemarketing, o jovem enfrenta dificuldades financeiras, a ponto de dever o aluguel para a colega Fernanda, com quem divide um apartamento. Isso tambĂ©m o afasta da faculdade, colaborando para a falta de perspectiva que ronda o futuro para ele.
Desconforto
Todos os relacionamentos do protagonista errante sĂŁo preenchidos pelo desconforto. A tensĂŁo financeira mina a pseudo-amizade com Fernanda, ele nĂŁo suporta as divagações de seu suposto melhor amigo, Henrique; as visitas para a mĂŁe na longĂnqua RegiĂŁo Metropolitana refletem um estranhamento, e ele Ă© marcado pela lembrança dos abusos sexuais cometidos por um tio. A intimidade, anunciada no subtĂtulo, parece incapaz de ser encontrada, o que marca os vĂnculos do personagem.
O nome, signo que contém a identidade de um ser, constitui uma problemática para Baldomero. Na falta de alguém para chamá-lo de Babá, ele busca por uma nova alcunha para a certidão de nascimento: o também incomum Valdomiro. É nesta indecisão, que beira a recusa de assumir o nome de batismo, que a fratura do sujeito se expressa em Baldomero, conflito que se repete durante a trama.
A linguagem do romance, que ora cria a atmosfera irônica da trajetória de seu protagonista, ora recai em absurdos, surge como uma surpresa. Estreia de Leandro Rafael Perez na prosa — ele é autor de três livros de poemas pela Patuá — o lirismo é deixado à parte, com uma poeticidade que se manifesta no livro principalmente pela cadência da narrativa, composta por um ritmo que simula o movimento da própria vida errante de Baldomero por São Paulo.
Um retrato, repleto de humor ácido, de um jovem tentando encontrar o seu lugar no século 21, Baldomero teria muito a ganhar ao centrar-se nesta premissa. Os problemas da trama tornam-se evidentes em uma das mais desnorteadoras passagens do romance. Incapaz de atender ao pedido de Fernanda, que desejava o apartamento só para si na comemoração do aniversário, Baldomero se faz presente, um penetra na própria casa. Com isso, ele presencia um assassinato cometido pela amiga e por sua própria irmã, uma espécie de vingança feminista contra um ex-namorado.
Este ponto do enredo fica deslocado do restante da composição, gerando uma fratura no ritmo da narrativa. Sem dĂşvidas, há uma quebra de expectativa, mas, esta nĂŁo acrescenta ao romance. O erro repete-se com um suicĂdio inesperado, fato que mais uma vez rompe com o tĂ©dio cotidiano da sobrevivĂŞncia na metrĂłpole, o que parecia nos anunciar Baldomero.
Como romance, Baldomero poderia ser muitas coisas. De certo, a trama resvala em todas elas, sem se concentrar propriamente em uma centralidade, a não ser a de seu protagonista. Isso não é um problema, de modo que, em 80 páginas, Leandro Rafael Perez flerta com o caráter multifacetado da forma, que presta um tributo ao romance moderno por excelência — “uma pequena ode ao Ulysses de Joyce que tem um pé na viadagem e outro nos problemas do século 21”, segundo a editora Fósforo.
A desvairada de Baldomero funciona melhor quando, apesar de seus desvios, consegue guiar o leitor por suas desventuras. Apesar de cair em armadilhas na composição de seu enredo, o romance pode ser um bom entretenimento para aqueles que desejam se atirar em uma trajetĂłria errante ou ter um gostinho do absurdo que Ă© a vida no inĂcio do sĂ©culo 21. Uma coisa Ă© certa: Baldomero Ă© para os leitores que nĂŁo temem uma boa dose de delĂrio.