Não sei se alguém fez as contas, mas, junto a Machado de Assis, Guimarães Rosa é o autor mais estudado entre nós. Dentro e fora das universidades. A crítica mais minuciosa, que dispõe do tempo necessário às especificidades e exigências do autor de Grande sertão: Veredas, tem sido pontuada, entre centenas de comentaristas, por gente que se especializou nesse veio: Willie Bolle e Walnice Nogueira Galvão, para citar os mais dedicados. Walnice com mais produção, a começar pela edição exemplar que preparou para Os sertões, de Euclides da Cunha, para a Brasiliense, em 1985, demonstrou, desde cedo, que antecipava o mundo de Rosa, mapeando lingüística e mimeticamente os sertões contidos no sertão como um todo. Daí a eleger Rosa como seu tema mais freqüente foi um passo. Mínima mímica demonstra o quanto esse passo é extenso, do tamanho do sertão, sem exagero.
O que faz do conjunto ensaístico desde já uma referência daquelas de a gente querer sempre dar uma conferida para ver se não está dizendo besteira é o rigor exemplar de Walnice. Exemplos: os 17 ensaios, todos eles. Cada um dedicado a uma peça rosiana ou a uma personagem ou aspecto ligado ao cenário e aos demais elementos de composição da literatura de Guimarães Rosa (1908-1967), que completou cem anos de nascimento em 27 de junho.
Como muitos são os olhares, a autora dividiu o volume em três partes. Na primeira, vai debulhando um a um, quase sem deixar rastros (os contos de Rosa, pela composição múltipla, justapondo narrativa popular, pesquisa de contexto, recriação de linguagem, incorporação folclórica, etc., sempre deixam outras possibilidades de abordagem), Meu tio o Iauaretê, de Estas histórias (1969), A terceira margem do rio, de Primeiras histórias (1961), e A hora e vez de Augusto Matraga, de Sagarana (1946). Na segunda parte, onze ensaios reúnem matéria geral mas decisiva para marcar a importância da renovação que representou o ficcionista: o regionalismo, vertente que ele supera junto com a outra, paralela em contemporaneidade, o psicologismo; as metáforas (extenuadamente buscadas pela ensaísta) do mar no seco sertão rosiano; a religiosidade rústica que norteia toda a obra do autor e de outro, também especialidade de Walnice: Euclides da Cunha; a pesquisa vocabular quase insana de Rosa, elaborando listas de palavras, algumas sem que Walnice possa afirmar terem servido de fonte confiável para algo produzido; a heteronímia rosiana, assinando-se, pelos poemas e textos que desejara publicar, mas, de certa forma, dividido pela dúvida, tão exigente — João Barandão, Soares Guiamar, Oslino Mar, Meuriss Aragão, Sá Araújo Ségrim, Romaguari Sães; o léxico, “extravagante” e insubstituível, composto de oito mil verbetes; o nome do pai, Florduardo, a insuflar no futuro escritor o encantamento diante da invenção lexicográfica; a aculturação às avessas no ensaio homônimo do livro, com um chinês se aclimatando em pleno sertão; a relação com o jornalismo e sua colaboração em periódicos, passagem em geral ignorada; a homogênea estruturação dos contos em Primeiras histórias, e um elemento raro em sua obra, o humor; o derradeiro ensaio desta parte dedica-o Walnice ao romance de Rosa e ao papel do narrador, humilde e iluminado. A terceira parte, de certa forma, abandona o autor estudado e estuda o universo que ele genialmente recriou. O sertão. Através de três ensaios, sobre Douglas Teixeira Monteiro, um iconoclasta pensando sobre aquele mundo precário; o advento Afonso Arinos, a partir do qual três gênios brotaram depois; e, para terminar, a aridez nordestina refeita no cinema, na novela, não mais na página.