Delícias do campo

Wilmar Silva faz uma poesia que não é submissão em Arranjos de pássaros e flores
Wilmar Silva confere à poesia o ingrediente cítrico da prosa
01/05/2003

Os imitadores seqüestram o autor original e cobram um resgate baixo, desvalorizando a vítima. A estranheza se transforma em regra e o que era motivo de adoração e exclusividade vira moeda corrente. Clones surgiram aos borbotões na poesia brasileira, de Cabral, de Drummond, dos concretistas. Manoel de Barros foi a última vítima do saque. Como se arrombar a gramática e transformar verbos em substantivos produzissem atributos suficientes para qualquer um chegar à grandeza do escritor do Pantanal. Estilo não se copia. Ninguém vai produzir coca-cola transcrevendo sua fórmula. O poeta mineiro Wilmar Silva é uma surpresa neste cenário de homens duplicados. Não repete o roteiro de Manoel de Barros, e sim o enriquece com novos atalhos, dialogando com a conterrânea matriz rosiana. Seu décimo livro Arranjos de pássaros e flores encanta pelas dificuldades do trajeto. É sua melhor obra, depois dos interessantes e experimentais Anu (2001) e Pardal de rapina (1999). Descreve 31 dias em um jardim durante o inverno, no mais cruel dos meses, propondo cenas minúsculas do mundo vegetal. Da “lavoura de pétalas”, define o caráter dos moradores. Apanha as minúcias de uma estação difícil às plantas, em que o homem procura o recolhimento. Só que ele vai atrás do que o homem não procura. Ao contrário de se trancar em casa, a voz poética se sujeita ao descampado. Não faz a ousadia das travessias dos grandes rios, mas traz a resistência navegável de um igarapé. O que poderia ser paisagismo ou beletrismo acaba sendo volúpia verbal. São detalhes que diferenciam uma cena da outra, a natureza muda de acordo com a proporção da chuva e da neblina.

Agropoema
Os poemas retratam o limiar do sangue; primeiro, diante das árvores, depois das marés de folhas e galhos. Silva realiza um metapoema rural. O jardim orquestrado é mais mato do que estufa. “Eu rumino de capim.” Diferentemente do lirismo deslumbrado, que se submete aos caprichos da natureza, ele estabelece aquilo que Anelito de Oliveira caracteriza como “estado crítico do desejo”. Não se encontra a nostalgia da harmonia, a idealização romântica e a passividade contemplativa, mas a intervenção fônica, o guerrear visceral, a impureza do convívio, a doação do caos e as perdas resultantes do hibridismo e da fusão literária. Fratura-se a linguagem e o osso é prontamente recolocado no lugar, sem gritos e traumas. Vigora uma inquietação insubordinada, um ruído onírico entre o narrador e o retrato, até porque nenhuma observação imutável é verdadeira.

Wilmar Silva confere à poesia o ingrediente cítrico da prosa, o fraseado acontece como uma irrupção da inconsciência, correnteza gramínea, que mais se enriquece quando transgredida e devastada. Eis o começo do verbo: fertilizar, fermentar e coagular o terreno do verso. Rescrever o texto a partir de suas próprias sobras e sombras. Fazer adubo da saliva e da secreção.

Os poemas efetuam o paralelo de diferentes aves com o cardume de flores, como pica-pau e flor-de-lótus ou de jandaia com crisântemo. Provoca o contraste do alto com o baixo, o embate do céu com o chão, expressando os humores e a fúria de um casal amoroso. O homem representaria a função etérea (“quase bicho do mato”) e a terra, o elo feminino (“origem da água”). No ambiente de luxúria e de contágio, o erotismo se faz presente, movendo as cartilagens do solo e se impregnando de um vaivém da clareza com o obscuro. Declarações como “olivas para enxaguar teu corpo” são seguidas de “eu, influência de vento,/ lavo teu corpo com a própria lima”. O encaixe consiste em fixar a erosão, despetalar o deserto, desertificar a flor. “Erodir e mais do que desmatar,/ eleger o mesmo pântano.” Apesar da possibilidade de ser confundido com o barroco, o que se vê é uma cadeia enxuta, horizontal, mínima. O moto-contínuo é cultivar o possível, a matéria próxima.

Ocorre uma mesma deformação sintática, já vista em Barros e Rosa, como “te tálamo”, “zoológico-me”, “euave”, “plâncton-me”. Com Barros, o poeta guarda a afinidade com o ermo e o erro, tanto que “sujo de inseto” (Silva) se aproxima muito do “sujo de mato” (Barros) e o título Arranjos de pássaros e flores (Silva) de Arranjos para assobio (Barros). A diferenciação está na valorização da cadência sonora, melódica, insular, em detrimento da fulgurância da imagem. A pintura e as metáforas visuais permanecem em segundo plano, prevalecendo a metamorfose oral, o coração rítmico, o emaranhado sensual. Tampouco se verifica mensagens aforísticas, juízos, explicações ao poema e instruções teológicas e telúricas, como no autor mato-grossense. Escrita polifônica, que muda com rapidez logo ao se declarar. “Idiomas que olvido a todo instante.” O testemunho em primeira pessoa dá a sensação do eterno desenlace. Wilmar Silva utiliza o “eu” como magia evocatória, declarando a transformação: “eu-riacho”, “eu-pássaro”, “eu-ícaro”. Na maioria das vezes, reafirma a identidade no início do discurso, estabelecendo uma mudança de rota. Veste e desveste o corpo no jardim das delícias.

Arranjos de pássaros e flores
Wilmar Silva
Orobé Edições
40 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho