Delicado e incisivo

No premiado "O peso do pássaro morto", Aline Bei utiliza linguagem poética para discutir valores morais caros à humanidade
Aline Bei, autora de “O peso do pássaro morto”
28/01/2019

Resistência: um conceito que está na moda. No contexto político, resistir é a palavra de ordem de uma parte da sociedade brasileira que antevê no resultado das últimas eleições um retrocesso capaz de levar a nocaute nossa tão jovem e frágil democracia. A raiz do problema está numa onda de conservadorismo que avança em todo mundo, não só no Brasil, mas que aqui carrega o moralismo a reboque, acrescido de ismos e fobias próprios de uma Idade Média inesperadamente rediviva. Se, em tempos pretéritos, resistir significava pegar em armas e lançar mão de estratagemas bélicos, hoje a batalha se trava em outro campo, na linha daquele velho raciocínio de que uma ideia pode se tornar a mais perigosa das armas. A arte em geral, e muito especialmente a literatura, são as primeiras a sentir e a espelhar conflitos e rupturas ainda em fase embrionária; são também importantes agentes de oposição a qualquer movimento que tente limitar sua liberdade de expressar o que vislumbra, porque uma de suas funções é justamente convidar a pensar, e nada pode ser mais livre do que o exercício do pensamento. A arte, por fim, está sempre alguns passos à frente no andar da humanidade, mesmo quando ainda não conseguimos alcançar, em sua plenitude, o que ela nos quer dizer.

Em 2017, quando Aline Bei lançou O peso do pássaro morto, o atual cenário político brasileiro nem de longe estava definido e a realidade que emergiria das urnas, quase dois anos depois, era uma incógnita. Para contar sua história, Bei valeu-se de uma estratégia narrativa de tons vanguardistas: um romance estruturado em forma de versos, na toada desse hibridismo que vem ganhando adeptos nas letras em todo mundo. Talvez tenha sido intuitiva, talvez fruto de uma sofisticada concepção intelectual, o certo é que a opção não foi algo fortuito, não aconteceu ao acaso, mas como parte de um processo cujo começo é anterior à obra, movimenta-se independentemente dela e nela está plenamente refletido.

A complexidade do momento que vivemos hoje, quando ninguém mais consegue ter certeza de coisa alguma, espelha-se no estranhamento que provoca um romance em versos no Brasil do século 21. Vamos recapitular: a poesia está na origem da literatura e há quem a considere a mãe de todos os demais gêneros literários. As grandes narrativas épicas — a Ilíada, a Odisseia, Os lusíadas — foram todas compostas em versos, só para se ter aqui alguns exemplos. A narrativa em prosa, uma experiência bem mais recente, é também a que há séculos está consagrada. Em nosso país, onde a poesia vem sofrendo um paulatino descaso nos últimos anos, por falta de leitores ou de editores dispostos a publicá-la, por que justo agora uma narrativa em versos?

A resposta talvez tenha ecoado meses depois e longe do lugar onde o romance de Bei foi concebido. Em novembro último, em seu discurso de Patrona na abertura da 64ª. Feira do Livro de Porto Alegre, Maria Carpi, poeta que o Brasil ainda não conhece como deveria, declarou: “os reveses, as contradições, os vários recaimentos e retomadas nos fortalecem. Temos que nos unir para construir o futuro. A melhor poesia será o poema social da morada do homem”. E concluiu: “o poeta escritor de poesia e o poeta que habita cada ser humano necessitam se apurar no exercício dos sentidos. Todos precisamos de livre acesso à poesia. Como deixar entrar poesia se todas as portas estão fechadas? Seremos a porta”. O momento requer muita reflexão, a poesia está aí para propiciar essa reflexão. Nesse sentido, uma volta às origens pode ser a mais adequada e poderosa ferramenta de resistência.

Evolução da linguagem
O peso do pássaro morto vem catalogado como romance e apenas na forma ficam sugeridos os versos; pode-se pensar numa “prosa quebrada”, uma vez que existe um fluxo narrativo, algo incomum na poesia contemporânea. Eis aqui a subversão e a novidade: se nas narrativas épicas clássicas a construção é toda em versos, com métrica rígida e rimas à imitação do canto (um exemplo moderno e brasileiro é o poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, um primor de construção poética formal que possibilitou inclusive que ele fosse musicado), na obra de Bei os versos, se os considerarmos como tal, são livres e brancos. Dito noutras palavras, o texto de Bei poderia ser reformatado e lido como prosa convencional sem prejuízo de sua essência.

O livro conta a trajetória, em primeira pessoa, de uma mulher dos 8 aos 52 anos. Na capa, duas enigmáticas colunas de números: 8, 17, 18, 28, 37, 48, no canto inferior direito; 49, 50, 52, no canto superior esquerdo. Logo o leitor perceberá que esses números referem os capítulos que, por sua vez, aludem à evolução da idade da narradora-protagonista. A personagem vive uma sucessão de dramas pessoais, e um em especial, do qual só se pode aqui adiantar tratar-se de um episódio de extrema crueldade, condicionará toda sua história e desventura. Aliás, não há como detalhar o entrecho sem privar o futuro leitor de um dos principais atrativos da obra. A opção por essa “prosa quebrada” ou “narrativa poética”, conjugada à técnica do monólogo interior, gera uma certa confusão de ideias que, no discurso de Bei, serve para espelhar de maneira caleidoscópica o universo feminino. Numa época em que machismo e misoginia voltam a ocupar espaços de onde se imaginava já estarem banidos, a autora toca em pontos particularmente sensíveis em passagens narradas com exemplar crueza. Uma sirena ligada a todo volume alertando para o perigo.

Outro detalhe importante a ser observado é a evolução da linguagem à medida que a personagem avança nos anos: aos 8, a narradora é uma criança e o livro se assemelha a uma obra infantil em suas páginas iniciais; aos 52, a madureza de uma calejada mulher de meia-idade conduz o desfecho. Entre os dois extremos, a cada capítulo a linguagem vai sutilmente acusando a passagem do tempo e as diferentes etapas do ciclo de vida da personagem, numa primorosa ourivesaria. O ceticismo que se vê crescer nas entrelinhas não é apenas da personagem, ele também se relaciona organicamente com o momento presente.

O esforço para contextualizar, de maneira crítica, a história da personagem na cena brasileira atual leva a pelo menos um subproduto que se torna às vezes indesejável: alguns trechos beiram o panfletário. O eu narrador permite que se jogue a culpa de certos arroubos na conta da personagem, mas é sempre frustrante, depois de se ler uma bela passagem como:

aos bebês/ é preciso contar que/ a casa da gente/ virou casas uma em cima das outras e isso é normal,/ a cidade dorme no entre,

deparar-se com o raso juízo de valor que vem na sequência:

algumas pessoas se recusam a vender seus terrenos/ pra virar apartamento, mas as construtoras/ dizem de milhão e convencem, o dinheiro/ deixa o corpo louco pra/ grudar na nota.

São poucos os desvios como esse, é bem verdade, mas, numa obra tão finamente urdida, eles destoam e suspendem momentaneamente o encanto.

Aline Bei, com seu delicado e incisivo O peso do pássaro morto, candidata-se a ser a porta da metáfora de Maria Carpi. Uma porta de dupla função: que se fecha em resistência às pressões dessa onda moralista e conservadora que tenta roubar o que de mais precioso tem a arte e a literatura, e que se abre para a poesia, trazendo com ela a necessária reflexão sobre os valores mais caros a nossa humanidade. Uma bela e oportuníssima estreia.

O peso do pássaro morto
Aline Bei
Nós
168 págs.
Aline Bei
Nasceu em São Paulo (SP), em 1987. Formada em Letras pela PUC-SP e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena, é editora e colunista do site cultural OitavaArte. O peso do pássaro morto, seu primeiro livro, venceu o Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Livro do Ano/Estreante com Menos de 40 Anos.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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