Em um dos textos do livro Ao mesmo tempo: ensaios e discursos, Susan Sontag observa, ao comentar sobre o romance histórico que: “o sentimento de estranheza é um efeito particular daquele ramo de literatura subjugado pelo rótulo de ‘ficção histórica’. Escrever bem sobre o passado é escrever algo como ficção fantástica. É a estranheza do passado, representada com uma concretude incisiva, que cria o efeito do realismo”. É esse olhar sobre o passado, em diálogo com uma trama paralela no presente, ancorado em uma vasta pesquisa histórica, alguns fatos reais e muita imaginação, que encontramos no romance As memórias do livro, da australiana Geraldine Brooks.
Vencedora do Prêmio Pulitzer de Ficção em 2005, a autora recria neste romance a história da Hagadá de Sarajevo, um dos primeiros livros judaicos a conter ilustrações. Com mais de 600 anos, o livro é um sobrevivente importante de períodos sombrios da história. Inspirando-se em alguns fatos reais sobre o livro, que foi salvo de forma heroica mais de uma vez em sua trajetória por pessoas que defendiam a liberdade e a preservação cultural, como o bibliotecário muçulmano que resgatou a Hagadá de um bombardeio sérvio durante a Guerra da Bósnia, e o estudioso islâmico que levou o livro para uma mesquita nas montanhas durante a Segunda Guerra Mundial, protegendo-o dos nazistas, a autora ficcionaliza diversos momentos históricos, com riqueza de detalhes, para recriar as vidas de muitas pessoas que, de alguma forma, poderiam ter contribuído para a sua preservação, uma vez que não há registros sobre o percurso real da Hagadá durante esse tempo. Dedicado aos bibliotecários, o romance é também uma homenagem a todos os que lutaram para proteger e salvar os livros em contextos críticos de guerras, quando a intolerância prevaleceu e tentou extinguir importantes registros culturais e históricos.
Entre história e ficção, Geraldine Brooks recria a trajetória de um importante livro judaico que sobreviveu, por mais de seiscentos anos, a alguns episódios marcantes da humanidade.
O romance narra a história de Hannah Heath, uma conservadora de livros australiana contratada pelas Nações Unidas em 1996 para restaurar e analisar a história da Hagadá de Sarajevo. Grande estudiosa dos manuscritos antigos, a possibilidade de realizar um trabalho tão importante é um desafio para Hannah, que parte para Sarajevo para fazer o trabalho no museu onde agora o livro será guardado sob um forte esquema de segurança. Paralelamente à história da Hagadá, temos a trajetória pessoal de Hannah, uma mulher muito estudiosa, porém solitária, que nada sabe sobre o seu pai e sempre teve uma mãe ausente. A temática mãe/filha surge como catalisador dessa parte do enredo, que perde um pouco a força com personagens por vezes caricatas. Filha de uma médica muito conceituada, mas que não reconhece o valor da profissão escolhida pela filha, Hannah faz descobertas sobre sua própria vida e sobre o passado de sua família ao se dedicar a desvendar as memórias do livro.
O objeto livro
O livro, enquanto objeto, é também protagonista desse enredo. Cada marca, mancha ou vestígio encontrados na pesquisa feita por Hannah revelam possibilidades sobre a sua trajetória, os lugares por onde esteve e as pessoas que dele cuidaram. Nesse sentido, Brooks aproxima os leitores apaixonados por livros do seu texto: conseguimos imaginar o que as marcas em um livro da biblioteca ou de um sebo, com as histórias por trás de uma dedicatória ou um papel deixado entre as páginas nos contam sobre o livro que temos em mãos, e também os vestígios nossos que deixamos ao manusear as obras. O livro objeto, aquele que além de levar o conhecimento escrito em suas páginas também carrega as marcas de sua história, muitas vezes transformando-se em um fetiche de colecionadores.
O trabalho de Hannah, descrito em detalhes, demonstra a paixão pela história, pela técnica e pelo trabalho, por vezes invisível, desses profissionais que se dedicam a resgatar histórias esquecidas, a restaurar objetos marcados pelo tempo, recompondo suas memórias e ajudando a mantê-los para as futuras gerações.
Mais do que um objeto histórico usado para ensinar a tradição judaica em família, a Hagadá no romance simboliza a sobrevivência e a resistência contra a intolerância. Os diferentes momentos históricos recuperados pela autora demonstram que após períodos de boa convivência e tolerância às diferenças na sociedade, como é o caso da Espanha na época da Convivencia, período citado no romance quando judeus, cristãos e muçulmanos conviviam em relativa paz, houve períodos de grande retrocesso, quando o medo, o ódio e a necessidade de demonizar o outro gerou tragédias. A Inquisição e o nazismo são exemplos disso, e o livro é mais que uma testemunha de todas elas: é um lembrete de que devemos estar atentos diante da possibilidade de retorno a um período sombrio e guiado pela intolerância.
O papel das mulheres
Um dos pontos interessantes do romance é o resgate ficcional de uma possível autoria feminina para o livro sagrado e pelo registro da violência contra as mulheres que a autora descreve em alguns momentos. Sem ter acesso aos estudos como os homens, já que isso lhes era negado, muitas delas desafiaram essas proibições e aprenderam a ler, a pintar e a resistir, e até mesmo a dominar assuntos relacionados à sua própria religião, como o conhecimento da Cabala. Nesse sentido, o livro aponta para as muitas participações femininas em muitas frentes, seja lutando na guerra, seja defendendo outras pessoas de injustiças, posturas geralmente apagadas ou silenciadas da História.
Entre presente e passado
Enquanto as descobertas de Hannah, mesmo com todo o apoio tecnológico e as consultas que faz a especialistas nos mais diversos assuntos e em diferentes cidades do mundo não recuperam totalmente a história de mais de 600 anos da Hagadá, a ficção pode existir para suprir essas ausências. Intercalando presente e passado, somos levados a acompanhar a viagem desse livro medieval importante de modo a imaginar sua história ao longo dos anos. De Sarajevo em 1940, quando a asa de uma borboleta pousou entre a encadernação das páginas e indicou a localização nas montanhas para onde o livro foi levado; a Viena em 1894, quando um encadernador doente vendeu os ricos fechos em prata para custear um tratamento experimental que poderia salvar sua vida; a Veneza em 1609, quando um padre da Inquisição assina as páginas do livro impedindo a sua destruição na fogueira por ser um livro de imensa beleza, Geraldine Brooks nos conduz por uma viagem no tempo, que em alguns momentos se torna um pouco descritiva, mas que consegue manter a curiosidade do leitor acesa para saber o desfecho dessa história.