É possível elencar pelo menos três personagens centrais na história do marxismo que têm estado em pouca fama com antimarxistas, pós-estruturalistas, e mesmo com boa parte dos entusiastas de Marx. Frequentemente não recebem sequer leituras antes que venham as críticas. É o caso de Louis Althusser, o filósofo argelino ligado ao estruturalismo e principal referência teórica para os estudos d’O capital de Marx. Também o de Mao Tsé-Tung, o líder revolucionário comunista chinês que, com o exército vermelho e a Revolução Cultural, paira por trás da Chinoise de Godard. E o do filósofo húngaro György Lukács, o ensaísta que começou carreira como pós-kantiano, aderiu ao hegelianismo, depois ao marxismo, tornando-se em sua maturidade um dos justificadores do stalinismo, para, por fim, passar os últimos anos de vida como um dos críticos dos rumos do Partido Comunista da União Soviética e da Hungria (permanecendo, ainda assim, um comunista).
Entre os três, o que certamente recebe mais simpatia de um público ampliado é György Lukács — não tanto por seus escritos de maturidade. Suas primeiras obras resguardam ainda o seu nome: A alma e as formas, um conjunto de textos fundamental na formação da maioria dos ensaístas do século 20; A teoria do romance, incontornável em qualquer teoria sobre o gênero; e História e consciência de classe, a primeira obra marxista de Lukács, cujo impacto transcende a história dos estudos marxianos, tendo influenciado, segundo Lucien Goldmann (Lukács e Heidegger) e Georg Mende (Estudos sobre a filosofia do existencialismo), até mesmo um livro como Ser e tempo, de Martin Heidegger.
Entre as obras que sustentam essa fama, certamente não se encontra a que agora se apresenta ao público brasileiro, a polêmica Marx e Engels como historiadores da literatura. Seus ensaios, escritos entre 1930 e 1940, constituem uma transição entre filósofo recém-convertido ao marxismo e o grande teórico soviético da literatura, que publicou a grande Estética em 1963. Apesar de o título propor uma apresentação de Karl Marx e Friedrich Engels como historiadores da literatura, os ensaios transcendem o objetivo. De fato, compõem um cabedal de proposições que resumem o propósito dos escritos estéticos do próprio Lukács. Teses que defendem o seguinte: a) a existência em Marx e Engels das bases para uma crítica literária materialista; b) o realismo como categoria central no entendimento da função da arte nas sociedades; e c) o estabelecimento da tarefa do materialismo histórico e dialético como a de um aperfeiçoamento da humanidade, ou ainda, como a de uma fundação de uma humanidade (em contraposição à inumanidade do capitalismo).
Em março de 1859, Lassalle enviava a Marx e Engels sua obra Sickingen, pedindo, como resposta, uma crítica franca e sincera da parte de seus correspondentes. Lassalle pretendia que a obra, a partir de seu protagonista histórico, Franz von Sickingen, um cavaleiro em meio às Reformas, apresentasse a tragédia da revolução: o duro embate entre utopia e Realpolitik no coração de todo e qualquer movimento revolucionário. A resposta sincera dos amigos socialistas realmente viria: a dupla acusação de certo “idealismo” em Lassalle, que, de um lado, teria cometido o erro de tomar uma situação singular como modelo universal para se pensar as revoluções, e, de outro, alguma ignorância da real tragédia de Sickingen, a saber, do fato de tratar-se de um revolucionário apenas discursivamente, mas que representava, na prática, a classe em decadência da qual fazia parte (a cavalaria).
Realismo
Em O debate sobre Sickingen entre Marx-Engels e Lassalle, de 1930, Lukács recupera a polêmica epistolar para destacar alguns pontos centrais da posição de Marx e Engels acerca do problema da literatura e de sua função social. Indica-se assim a posição fundamental de Lukács no debate sobre as formas artísticas e sobre a cultura em geral: para o filósofo, a discussão de qualquer aspecto aparentemente isolado da sociedade deveria ser remetido à totalidade das relações históricas. Isto é, o que interessa a Lukács nessas correspondências é uma discussão literária que não se furta à exploração de aspectos mais gerais da sociedade. E como realidade e literatura são colocadas lado a lado, Lukács fará uma leitura de Marx e Engels como defensores de algum realismo nos textos literários.
Essa defesa se fortalece no ensaio Friedrich Engels como teórico e crítico literário, de 1934, com a ênfase na leitura de um Engels entusiasta do realismo — isto é, não tanto de um autor engajado nas questões socialistas, quanto a de um escritor que percebe a trama das relações “reais” escamoteadas pela ideologia dominante. Depois de apresentar um jovem Engels engajado nos problemas literários, Lukács demonstra como a cooperação do pensador com Marx em Paris e Bruxelas, não obstante o levasse cada vez mais à investigação de problemas eminentemente político-econômicos, o faria também defender cada vez mais a “irreverência proletária” diante dos bens culturais da burguesia, traçando assim alguma estratégia na luta dos trabalhadores pela cultura, uma vez que “concessões à ideologia da burguesia (…) podem levar, com muita facilidade, a que os escritores tracem automaticamente para as ações do proletariado o mesmo quadro determinado pela burguesia (…)”.
Marx e o problema da decadência ideológica, de 1938, representa também, na obra de Lukács, um estabelecimento definitivo do realismo como categoria, a ser adotado pelos escritores engajados na luta proletária. Após exibir os estudos de Marx sobre aquilo que Lukács chamou de “decadência ideológica da burguesia” no século 19, em comparação com a “época heroica” dessa classe no auge do renascimento italiano, o filósofo húngaro transpõe o problema da “degeneração burguesa” para o seu próprio século. Com isso, argumenta que a divisão do trabalho no capitalismo avançado “inumaniza” todas as classes, fazendo com que o intelectual burguês, e também o escritor, o literato, busque “formas degeneradas” da literatura. Com isso, atacou fortemente as vanguardas artísticas, socialistas ou não, do naturalismo ao surrealismo.
O realismo, para Lukács, deveria ultrapassar a mera descrição da realidade aparente do naturalismo sem recair na deformação do real (por meio do “psicologismo” ou do “formalismo estéril”), para apresentar as relações sociais complexas e dialéticas que não se apresentam à primeira vista do espectador da história. Dois anos depois, em Tribuno do povo ou burocrata?, esses argumentos ganhariam reforço com a defesa de uma adesão ao realismo a partir de um amor pela humanidade porvir.
Precisamos ainda compreender o alcance das formulações de Lukács que aí se gestaram — é evidente que pouquíssimo se avançou no que tange à compreensão da ligação entre os conceitos de “humanidade”, “amor” e “realismo” na obra do filósofo. No entanto, é triste também recordar que tais textos viram à luz à mesma época do recrudescimento do stalinismo, que por volta de 1940 enviou para campos de trabalho forçado, ou mesmo fez desaparecer, escritores que não seguiam a cartilha oficial do partido, acusados de apresentar em sua atividade justamente algo da “degeneração burguesa” acusada por Lukács nestes ensaios. É preciso ainda que o estudo desses textos traga à luz a sua limitação (para dizer o mínimo) histórica, bem como o campo largamente inexplorado que se estende à vista dos estudos literários brasileiros, que novamente parecem retomar a dimensão de vida que permeia e inunda a arte — uma lição também lukacsiana.