Declínio delirante

"Dentro de tudo, a noite" comprova a habilidade de Marana Borges de deixar as coisas subentendidas ao longo da narrativa
Marana Borges, autora de “Dentro de tudo, a noite”
01/07/2024

Em uma série de 16 gravuras água-forte, Giovanni Battista Piranesi retratou o interior de prisões imaginárias. No projeto, conhecido como Carceri d’invenzione, o italiano figura subterrâneos e escadarias em dimensões épicas. As gravuras impressionam pelo aspecto onírico e cenários obscuros, que geram um efeito labiríntico.

Referências a Piranesi marcam o enredo de Dentro de tudo, a noite, romance de Marana Borges sobre a reforma de um casarão no interior de São Paulo no início do século 20. A trama segue a falência de uma família que vê na reforma a possibilidade de retornar à glória a antiga fazenda de café. Quando Aparecida, a protagonista de sete anos, não identifica como prisões os espaços representados nas figuras de Piranesi em um livro de seu pai, uma questão é posta ao leitor: pode uma casa aprisionar?

Tal dúvida não é inédita na literatura de Marana Borges. A noção de lar como prisão também está presente em Mobiliário para uma fuga em março, romance de estreia da escritora, vencedor do prêmio Minas Gerais de Literatura e indicado ao prêmio Oceanos. No primeiro livro, apesar de se afastar fisicamente da casa de sua infância, a protagonista não consegue se desvincular daquele espaço. Enclausurada pelo legado familiar, a narradora não encontra morada após partir. Nesse sentido, Dentro de tudo, a noite retoma temas do romance anterior e lança luz sobre o projeto literário em construção de Borges.

Em entrevista a Marcelo Nocelli, editor do romance, a autora explica que Dentro de tudo, a noite é o segundo livro de uma trilogia sobre a casa iniciada por Mobiliário para uma fuga em março. A terceira obra seria um livro de poemas ainda não publicado. Dessa forma, o projeto parece ser marcado por uma variedade estética. Se o último livro é de poemas, o primeiro é caracterizado pelo forte lirismo da narração em primeira pessoa. No romance mais recente, Borges opta pela narrativa em terceira pessoa, construindo a história a partir da perspectiva de um narrador onisciente. O fio condutor do projeto, portanto, é temático. Como posto pela autora na mencionada entrevista, o interesse está na “casa vista não só nesse topus, nesse também lugar comum, como lugar acolhedor. [A casa] não é abrigo mais; é prisão”.

O declínio
Ambientado no Vale do Paraíba, Dentro de tudo, a noite tematiza a decadência dos barões de café no final do século 19 e início do 20. O vale, situado entre o sul fluminense e parte do interior de São Paulo, foi um polo de produção de café para exportação durante a monarquia. Com o esgotamento do solo e dificuldades econômicas, a região entrou em franca derrocada. Além disso, as fazendas dependiam fortemente do trabalho de pessoas escravizadas e foram afetadas pela proibição do tráfico negreiro em 1850. Esse último ponto recebe especial atenção no romance, o atrito entre personagens negros e brancos trabalhado ao longo da narrativa.

A exploração de uma mão de obra livre, o preconceito religioso, a ameaça de estupro de trabalhadoras negras — todos são pontos figurados de forma sutil por Borges no livro. A opção por não retratar os conflitos raciais de maneira explícita, deixando-os subentendidos, é sagaz. O efeito gerado é de uma constante tensão ao longo do romance representativa da dissimulação do racismo brasileiro. A cena entre o pai de Aparecida e Nanan, uma mulher negra empregada pela família, ao final do livro é o ponto mais alto dessa estratégia. A aflição gerada na interação está no que não é dito pelos dois personagens, mas compreendido pelo leitor: a ameaça que o pai representa para Nanan.

Se em Mobiliário para uma fuga em março a protagonista está aprisionada mesmo após sair de casa, os personagens de Dentro de tudo, a noite estão enclausurados por se recusarem a ir embora. A família anseia pelo retorno de uma glória passada. O pai rejeita a República, escrevendo cartas em defesa da monarquia. A mãe, nascida quando já estavam em decadência, nunca viajou para fora do Vale do Paraíba e vê na reforma a salvação da fazenda. A avó, a única a ter experienciado o findado prestígio, se encontra à beira da morte.

Ainda ouviria dizerem “se acabou”, as próprias filhas fazendo as malas, crescidas de corpo e cabelos, a roupa dobrada às pressas, todas fugindo do vale, mais uma década e tudo estaria vazio. A mão da baronesa sobre os ombros delas todas, a pedira que ficassem. O cansaço lhe entorpeceria a voz, a vista, a vastidão do corpo. Talvez que as rugas das pessoas que ficam sejam maiores. Sobraria a caçula, que agora ela trazia no ventre.

Quando por fim resolvesse fugir, a baronesa já não teria forças para cruzar o vale, apegada demais ao absurdo que era a vida, ali.

A narrativa transita entre dois tempos. O romance é majoritariamente situado no início do século 20, mas retorna em certos pontos para falar da juventude da avó — a baronesa. Nesses momentos, Borges figura a antiga pompa da família, mas também o início da decadência. A preocupação com o preço do café e a deserção de pessoas do vale servem para representar o declínio da região. As filhas da baronesa fogem, o casamento visto como saída da família que se arruína. A única que fica é a mãe de Aparecida, que já nasce em meio ao colapso. Dessa forma, vida e morte ganham valor simbólico no romance.

É com o falecimento do barão ainda no final do século 19 que a família começa a entrar em apuros. A doença da baronesa no tempo presente da narrativa simboliza o estado das coisas. Sofrendo de tuberculose, sua morte é lenta e penosa. Seu perecimento se estende dolorosamente ao longo do tempo. A mãe de Aparecida acredita que a reforma do casarão é modo de restabelecer a saúde da baronesa. Nesse sentido, a avó é metonímia da fazenda: salvar a primeira significa recuperar o renome da segunda. No entanto, o plano falha. A baronesa morre, a obra do casarão para e a família sofre sua queda final. A morte do barão inicia o colapso, a da baronesa o encerra.

Com a saída da baronesa e da mãe de Aparecida de cena, o pai ganha principal destaque na segunda metade do romance. Introduzido na narrativa de forma periférica, o pai de Aparecida é inicialmente figurado como detentor da razão. Enquanto a mãe se fixa na ideia de reformar o casarão, convencida de que ele irá desabar a qualquer momento, o pai demonstra total desinteresse pelo assunto. Contudo, com o desenvolver do enredo percebe-se que seu apego ao passado beira o desvario. Referências a Dom Quixote e à dedicação do personagem aos livros deixam a entender que sua sensatez é aparência. Desse modo, o romance encerra com ironia astuta, apresentando uma dúvida ao leitor: quem de fato são os loucos dessa família?

A marca mais interessante da escrita de Marana Borges é sua habilidade de deixar as coisas subentendidas. Sem figurar questões explicitamente, Borges possibilita ao leitor a chance de ler o que fica nas entrelinhas do texto. A força maior de Dentro de tudo, a noite está aí. A narrativa prende o leitor por confiar em sua inteligência. Só que, ao contrário das prisões figuradas por Piranesi, aquela criada por Borges está longe de ser desagradável.

Dentro de tudo, a noite
Marana Borges
Reformatório
238 págs.
Marana Borges
Escritora e crítica literária, doutorou-se pela Universidade de Lisboa com uma tese sobre Proust. É autora também de Mobiliário para uma fuga em março (Dublinense, 2021), vencedor do prêmio Minas Gerais de Literatura e indicado ao prêmio Oceanos.
Allysson Casais

Doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

Rascunho