Avançar algumas páginas em Réquiem para Dóris pode se revelar uma tarefa árdua. A leitura da contracapa, do primeiro parágrafo, da primeira página é o bastante para compreender que o convite ao livro é restrito. O que não significa, necessariamente, que vencer as 134 páginas resultará em desperdício. O mesmo espera-se desta resenha, que até o breve momento, segurou-lhe a atenção. Missão igualmente complexa, vide se tratar de um texto sobre uma obra que, logo de cara, foi definida como “não convidativa”. Desafio lançado.
Oneide Diedrich, autor do réquiem em questão, é psicólogo e músico. Informações que constam da orelha do livro, mas que poderiam ser facilmente deduzidas pelo convicto leitor que superou as páginas iniciais. Como em um infindável devaneio (embora finito), Diedrich aborda a trajetória da personagem Dóris. Desde o parto até a vida adulta, e o que sobrou dela. A protagonista ganha voz, assim como um homem ordinário (em termos literais) e aquela que aparenta ser a filha do casal.
Sem qualquer cronologia linear (na verdade, o adjetivo não se enquadra em nada que diga respeito a Réquiem para Dóris), o autor estreante avança por entre capítulos com traços de contos independentes e sugere um destino final ao todo. Existencialismo, vivências sensoriais, caminhos sinestésicos, metáforas sobre viver e morrer, e outros elementos recorrentes da psicanálise transbordam das páginas e fazem do livro um manifesto consciente da loucura (sob a qual todos nós padecemos, vale dizer). Freud ficaria orgulhoso. Ou Lacan, ou Reich, ou sabe-se lá o estudioso da mente favorito de Diedrich (talvez, ele próprio).
Leitor, ainda acompanha? O nome de Freud parece sempre surtir efeito como manutenção de atenção. Voltemos. Em linhas retas, não há enredo em Réquiem para Dóris. Embora alguém possa discordar (um psicólogo, talvez). Uma jornada inventiva, imaginária, fantasiosa. Por vezes, admite-se, real. E justo aí, o elo com o (persistente) leitor.
A viagem proposta sugere elementos empáticos com os passageiros dispostos a permanecer no trajeto. Vez ou outra, a identificação acontece. Momentos de júbilo na letárgica leitura. Como bom profissional que aparenta ser, Diedrich soube mensurar a densidade exata do delírio (sim, não passa de um delírio, com resquícios de realidade) para que aqueles (poucos) que toparem entrar, não queiram sair.
Descrições de atividades mundanas e afazeres diários aparecem para equilibrar o panorama desvairado, que parece prevalecer:
Colou a bolsa da professora na mesa da professora, pôs cola em fechaduras, colou coleguinhas em seus cadernos e livros, colou as carteiras de seus coleguinhas em seus coleguinhas. Colou, colou, colou e cada vez que colava sentia muito prazer em colar.
Há uma sensação de conforto durante o percurso. Denso, penoso. Mas, ironicamente, hedônico (ou seria epicúreo?). Inclusive, atente-se ao termômetro de prazer e de identificação pessoal durante a leitura. Diz muito sobre você. Como filho, pai, mãe, pessoa. Sobre quem aparenta ser. Sobre quem gostaria de ser. Sobre quem, de fato, és.
Musicais
Sigo sozinho? Talvez seja melhor falarmos de música. Todos gostam de música. Nem todos gostam de psicologia. O elemento musical neste livro é constante. Em se tratando da obra descrita, um bálsamo, convenhamos. Os leitores mais atentos (ou mais musicais) terão pequenas e agradáveis surpresas. Algumas poderão gerar, vejam só, até mesmo um sorriso. Daquele no canto da boca. Nada muito expansivo. Não há qualquer intuito, velado ou não, em entreter. Surpreender, quem sabe.
Falemos de música, então. Como supramencionado, Diedrich não se restringe ao consultório e encara, com freqüência, imagina-se, o palco. Segundo consta, o autor é creditado como vocalista e compositor da banda Pelebrói Não Sei, um grupo de punk (?) rock de Curitiba, salve engano.
No repertório, canções autorais, como “Linda morreu virgem”. Linda aparece no livro. Na verdade, a frase “Linda morreu virgem” aparece. Alice Clair aparece no livro. E intitula outra composição do grupo. Pasmem: “Réquiem para Dóris” consta de entre as canções mais conhecidas da trupe. Não exatamente um espanto, tudo bem. Uso indevido de hipérbole para ludibriar a atenção do leitor. Funcionou?
Talvez o real choque se dê na página 91, quando um inusitado Gonzaguinha surge explicitamente. Não pelo nome, mas pela canção. Explode coração. Está lá, escrito. Logo seguido de uma adaptação da letra do compositor carioca (“Chega de reabrir, chega de readaptar, de reacender, reafirmar, reajustar, realçar, recalcar, reanimar, retardar”). Os íntimos de Gonzaguinha chegam a cantarolar a versão original. Uma iguaria inesperada de Diedrich. E chega (de tentar dissimular e disfarçar e esconder…) de exemplos. Para não corrompermos a refeição principal.
Consciente
Antes de prosseguirmos, e antes que se esqueça, a cuidadosa diagramação ganha apoio das monocromáticas ilustrações de Alberto Benett, de fortes traços. Pouco elucidativas, mas, nem por isso, dispensáveis. Promovem bem-vindas pausas e a possibilidade de retomar o fôlego (ou o interesse).
Em termos literários, Diedrich esbanja intimidade com o métier. Além de malícia. Corretamente, resolveu enveredar, pela primeira vez, na literatura, permeado por aquilo que o pauta profissionalmente. Usa comedidamente frases curtas e ousa nas longas. Escolha adequada para o estilo empregado. Um apurado e pertinente uso de vocabulário e belas intervenções textuais. Ou seja, a suposta dificuldade da leitura jaz no transcendentalismo e na dialética. E não nas habilidades como escritor iniciante. Embora quase virgem, competente.
Difícil saber se o desempenho seria o mesmo diante de um romance tradicional, de uma enfadonha prosa, ou de uma excitante crônica. Assim como é improvável supor se o paranaense prefere Machado, Pessoa ou Paulo Coelho (fica o desejo para que o páreo seja entre os dois primeiros). Jung e Carl Rogers ele certamente leu.
Como a obra depende de conteúdo e criatividade psicológica, não faltou alimento. O resultado agrada aos adeptos. Ainda mais quando consideramos se tratar do primeiro lançamento do selo Encrenca, sediado em Curitiba (salve, salve Paulo Leminski). Explica-se. Recém-criada, a Encrenca faz questão de sustentar uma didática frase autoexplicativa: “para obras que redimensionem o conhecido, inventem o jamais visto”. Destarte, Diedrich pode dormir em paz. Alguém acordado por aí?