Decálogo para um cronista

Espontaneidade é mérito e defeito de "Uma porta para um quarto escuro", de Antonio Cestaro
Antonio Cestaro, autor “Uma porta para um quarto escuro”
01/01/2013

O velho problema da crônica. Rubem Braga escrevia com um lirismo e uma suavidade que freqüentemente beirava a poesia, e seus temas eram tão banais que vendia uma falsa idéia de facilidade. No entanto, é sempre bom lembrar a resposta que deu ao editor Adolpho Bloch quando questionado: “E eu lhe pago uma fortuna para o senhor trabalhar apenas meia hora?” “Não, são 30 anos e meia hora”.

Conta, e muito, a experiência de lidar cotidianamente com a matéria escrita para se chegar ao apuro estilístico. A questão é o excesso de maus leitores de Braga que buscam a crônica por acharem que este é o meio mais fácil de satisfazer veleidades literárias. Mas em literatura nada é fácil. Lapidar cada palavra é mais que preciso, é fundamental.

Antonio Cestaro parece saber disso. Seu livro de estréia, Uma porta para um quarto escuro, não chega a ser uma obra perfeita e acabada. É livro de quem inicia, daí a exagerada ingenuidade dos primeiros textos, mas também é livro de bom leitor, de quem sabe dosar a despretensão. E talvez por tanto confiar na espontaneidade, não chega a cumprir todos aqueles compromissos que se pede ao bom cronista.

O primeiro desses compromissos é com a linguagem. O cronista é, sobretudo, um escritor, e precisa ter certa reverência à língua, fazer dela um instrumento de manuseio preciso, fugir dos exageros, como Paulo Mendes Campos. Cestaro busca a clareza das palavras. Opta sempre por um linguajar cotidiano, direto, liberto de firulas desnecessárias.

Em segundo vem o compromisso com a verdade pessoal, que não é a verdade histórica. O fato é uma coisa muitas vezes longe daquilo que narra o cronista. Não que ele esteja entregue à mentira: antes, fala de sua crença, de como viu um episódio, e sua versão é a mais exata. É a Brasília inaugural deAnaMiranda, encantadora e mítica. Contando casos banais, prosaicos, Cestaro termina também por dar-lhes verossimilhança, pois conta o que acredita ter visto.

Em terceiro lugar está a forma. Ou seja, crônica é crônica, não conto ou análise conjuntural. É preciso narrar um fato. E aí reside a queda de muitos pretensos cronistas que protestam contra o mundo ou se derramam em louvaminhas, mas de fato não narram nada. Estes precisam ler Antonio Maria, um excelente contador de histórias. Neste aspecto Cestaro se sai bem. Quase todas as suas crônicas contam acontecimentos, mesmo que desimportantes.

Quarto compromisso é o tema. Aí é quando o cronista diz exatamente aquilo que o motivou, que o seduziu ou desgostou. Ele está na fronteira da precisão jornalística com a imaginação ficcional, e foi provocado por um sentido que aflora neste momento. Luis Fernando Verissimo e suas viagens, ou as sensações apuradas de seus sentidos. No caso de Cestaro, é o encanto da sanfona de Luiz Gonzaga que o levou a escrever a crônica que titula o livro.

Quinto, o público. É quase impossível saber para quem se escreve, no entanto é sempre prudente tentar adivinhar quem será o leitor e buscar seduzi-lo, afinal, escrever é convencer alguém de suas mentiras verdadeiras. Affonso Romano de Sant’Anna sabe deste leitor e o seduz com glamour literário. Na narrativa de um quase acidente na 23 de Maio, Cestaro se aproxima desta sedução, mesmo quando se perde numa conclusão pouco sedutora.

Sexto, o prazer. “Não faço nada sem prazer”, escreveu Montaigne, e o cronista deve pensar nisso. Primeiro no seu prazer e depois no prazer do leitor. Aí se estabelece a troca que, pensando bem, fez o sucesso de Fernando Sabino. Cestaro modula este prazer pela brevidade dos textos e pela maneira despretensiosa com que os escreve.

Sétimo, o compromisso com o seu tempo. O cronista é vivente de um momento histórico e precisa dele para sobreviver. Nelson Rodrigues foi um que viveu de pescar nos jornais, e assim pôde como ninguém denunciar a hipocrisia moral de um tempo de revoluções. Cestaro fala do hoje, e chega a compará-lo com o ontem, mas, parece, é mesmo a dicotomia entre passado e presente que o seduz.

Oitavo, com a vida. É dela que se tira a matéria básica da crônica. E aí não há limites para o ordinário ou o extraordinário. José Carlos Oliveira tanto falava dos grandes feitos de seus dias como da mediocridade de um antigo bairro de Vitória. Em tudo encontrava vida e arte. Pisando noutra direção, Cestaro fala de suas experiências e pouco olha a vida que passa ao seu lado.

Nono, com seu meio. O mundo do escritor não está limitado às quatro paredes de seu escritório. Ele precisa sentir as dores e os risos que estão a sua volta. Rachel de Queiroz neste ponto é exemplar. Foi ferina e até implacável com o mundo que via da janela, mas nunca perdeu o senso de contemplá-lo com reverência e dignidade. Aqui Cestaro se perde pelo individualismo. Pouco conseguimos ler do meio onde ele está inserido.

Finalmente o décimo compromisso, aquele que o cronista assume consigo mesmo, o envolvimento medular com as palavras, a luta diária e vã, como definiu Drummond. Aliás, Drummond vasculhava dicionários e compêndios para encontrar o sentido preciso daquilo que queria dizer. E dizia. Já Cestaro vai no caminho do espontâneo. E isso, se por um lado dá leveza ao texto, por outro favorece uma leitura descompromissada, apenas levada pelo espírito do passageiro.

Esta, no entanto, é apenas a visão de um leitor. Cada escritor, se de fato quer se saber escritor, deve estabelecer seus próprios conceitos e, claro, escrever — como fez, e faz, Antonio Cestaro, que põe no papel suas emoções e compartilha seus sentimentos.

Uma porta para um quarto escuro
Antonio Cestaro
Tordesilhas
88 págs.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho