Publicado originariamente em 1963 pela Editorial Sudamericana, O jogo da amarelinha é o romance mais experimental de Julio Cortázar. Reeditado mais uma vez no Brasil, agora pela Companhia das Letras (com tradução de Eric Nepomuceno), o livro prossegue requerendo novas estratégias de leitura. Por um dinamismo próprio de pontes, ritos e passagens, O jogo da amarelinha continua a ser descrito como a obra de cada leitor. Em suas tramas, o leitor é também um personagem ativo e ativador dos jogos verbais do romance.
Se Roland Barthes proclamou, em ensaio seminal de 1967, que a morte do autor se pagaria com o nascimento do leitor, quase meia década antes Julio Cortázar já estava propondo a plena realização de tal teoria enunciativa através de O jogo da amarelinha — Rayuela, no original. Para além de um autor e de suas intenções, em Rayuela Cortázar transfere para o leitor toda significação final da obra, redefinindo a literatura como um objeto não mais do que virtual. Livro informe, pelas transversalidades de sua escrita, a totalidade do jogo literário só é apreensível fragmentariamente e sob o signo do inacabado.
Partindo de um retângulo equivalente à terra para chegar até a casa do céu, no tabuleiro de leitura do romance o leitor de O jogo da amarelinha é incitado a percorrer os transcursos arriscados de um jogo e de sua produção de significantes perpétuos. Logo ao abrir o livro, ao leitor é oferecido um tabuleiro de direções que o incita a eleger, ao menos, dois tipos possíveis de leituras: uma que se deixa ler de modo linear — do primeiro capítulo ao 56 — e outra que se inicia no capítulo 73 e presume uma forma de romance-colagem a partir das combinações sugeridas por um novo dispositivo de leitura.
Nesse sentido, uma das novidades que Rayuela traz para o jogo literário é a busca de um espaço de leitura a ser conquistado pelo leitor diante de um tabuleiro indicativo. Multiplicador de perspectivas, o jogo opera como um imago mundi do próprio universo discursivo do livro. Oferecendo ao leitor principalmente duas leituras — uma linear e a outra saltada —, o ensaio de romance que é O jogo da amarelinha compõe-se de trechos fabulares de textos que conclamam o leitor à inventiva crítica de colaboração infinita sobre uma realidade convergida em promessa de escrita. Incluído em seus eixos temáticos, o leitor integra parte do processo criador do romance. Em seu tabuleiro de jogo, é a leitura saltada que é privilegiada em prol de uma proatividade do leitor na composição da obra. Um romance que começa, Rayuela não apresenta ao leitor nenhum final tranquilizante de casualidade estratégica, já que, até mesmo numa leitura linear, o leitor não saberá no fim da história, se Horacio Oliveira se suicidou ou não.
Múltiplas leituras
“Encontraria a Maga?” é a pergunta que abre o romance, como um dínamo de buscas inconclusas. Livro que se ensaia plural, O jogo da amarelinha é escrito a partir de textos que exorbitam qualquer narrativa tradicional romanesca. Em plena gestação narrativa, em suas páginas reúnem-se textos, discursos, poemas, artigos científicos e notícias de jornais. Por meio de uma narrativa que constantemente se constrói a partir de narrativas outras, o livro é narrado em terceira pessoa por um enunciador ambíguo que, sendo sujeito e objeto de sua escrita, mais problematiza do que desvenda os aspectos essenciais da trama na qual se insere.
Numa combinação particularíssima entre amor e humor, crítica e jogo, Rayuela não se sujeita de todo às regras de sucessão realista. Tal qual a obra imaginária idealizada pelo personagem Morelli de dentro do romance, parte fundamental de O jogo da amarelinha é composta sobre o próprio problema de escrevê-la. Com reiterados questionamentos a respeito das próprias fronteiras fabulatórias, num “desenraizar contínuo”, “à margem de toda graça”, o romance poliédrico de Cortázar mais se apresenta ao leitor como um manancial de interpretações inesgotáveis.
Propondo uma nova prática de leitura a ser produzida em ato, Rayuela é o primeiro romance latino-americano a efetivamente tomar a si próprio como tema central de fabulação. Experimento de romance (e de antirromance), ele pode ser lido como uma inventiva narrativa em torno da impossibilidade de fechamento de toda ficção. Obra perpetuamente aberta, o romance em movimento não se encerra no próprio jogo, mas, antes, se produz pelos diálogos possíveis entre as suas múltiplas leituras. Como o propõe ficcionalmente Morelli, o romance-fragmento que é O jogo não pretende enganar o leitor, mas sim apresentá-lo à argila significativa de um novo começo a se modelar.
Como o jogador de um jogo da amarelinha, o leitor cúmplice de Rayuela deve manter uma perna no ar antes de pisar na casa de um novo capítulo. Como a manusear um jogo de peças móveis, de um leitor cúmplice é requerido acompanhar os saltos de uma escrita que não cessa de se revelar. Percorrendo o romance por notas dispersas, numa segunda disponibilidade de leitura, será o leitor cúmplice que comporá a colagem última do livro a ser lido. Sem se deixar determinar por uma necessidade prescrita por estruturas definitivas de uma obra-prima, numa leitura saltada de O jogo da amarelinha as partituras dos capítulos mais se anunciam ao leitor como um ensaio geral de textos permeáveis a intertextos. Fábula de espumas, com a propensão fragmentária de uma narrativa autônoma, cada capítulo do livro se aproxima de uma existência descontínua cujas diretivas de leitura são, sobretudo, intertextuais. Pensado e fabulado enquanto circuito interno simultâneo ao próprio narrar, numa segunda leitura de Rayuela, o próprio desenlace narrativo se encerra num ciclo labiríntico e hermético pelo qual o leitor poderia, se seguisse estritamente o seu manual de instruções, acompanhar a imobilidade movente da estória e prostrar-se perpetuamente à sua espera, dando voltas hiperbólicas entre o capítulo 58 e o 131.
Tema recorrente de busca, o jogo que é oferecido ao leitor de Rayuela mais remete a um desafio de percurso cujo significado último pende em suspensão. A começar pelo título que remete à polissemia do jogo, O jogo da amarelinha conclama para si a existência de um leitor-personagem que venha a reinventar as narrativas do romance e que seja mais um consumador do que um consumidor de suas formas finais. No romance-ideia escrito por Cortázar, o jogo simboliza mais uma via de investigação sobre o romance e sobre seu tema do que um instrumento narrativo de aptidão realista. Como se o jogo a tudo contagiasse no livro, a escrita da obra é contaminada de tal atmosfera lúdica próxima de uma ficcionalização de tudo. Em paralelismo lúdico, também os personagens, os procedimentos e os assuntos presentes em Rayuela se encontram contagiados de uma mesma atmosfera inventiva de ficcionalidade crítica.
Jogo labiríntico
Com ecos de Horacio Quiroga (contista uruguaio difusor do fantástico) e de Horácio (poeta romano lírico-satírico), Horacio Olivera é o nome do personagem principal da primeira parte do romance: aquele em torno do qual as disposições dramáticas de “Do lado de lá” e de “Do lado de cá” se enunciam. Duplo de um outro duplo, Horacio Oliveira simboliza um intelectual que a tudo problematiza com o intuito de corroer os instrumentos lógicos regentes dos limites últimos da razão ocidental. Para Oliveira, pensar equivale a viver. Intelectual e escritor malogrado, ele tende a formular seus problemas existenciais em termos literários. Em certo sentido, Oliveira mais lê o mundo para demonstrar aquilo que diz os livros. Membro do Clube da Serpente (do qual integram: Maga, Babs, Ronald, Etienne, Guy Monod, Perico Romero, Ossip Gregorovius [nome-alusão ao poeta Óssip Madelstam] e Wong), Horacio Oliveira pode ser referido como um buscador existencial cujas sondagens marcam todos os signos do livro de uma mesma busca narrativa do duplo. Em gestação contínua, por tensões de cenas simultâneas, o romance-colagem de Cortázar também se deixa ler por jogos de espelhamentos múltiplos: entre Oliveira e Traveler, Maga e Talita, Paris e Buenos Aires, “Do lado de lá” e “Do lado de cá”. Como exemplo de tal paradigma de escrita, no capítulo 149 é apresentado um poema visual de Octavio Paz que enuncia: “Meus passos nesta rua/ Ressoam/ Em outra rua/ Onde/ Ouço meus passos/ Passarem por esta rua/ Onde/ Apenas a névoa é real”.
Reinventando-se a cada passo com a coparticipação de um leitor, em O jogo da amarelinha certa face lúdica da escrita opera como um componente basilar do próprio processo de produção textual, convergindo, também, em seus diversos níveis de entendimento. Como numa rapsódia jazzística, o romance poliédrico de Cortázar não preexiste à sua enunciação, mas se produz em associação com as suas múltiplas faces. Articuladas com o ângulo ficcional interno e apropriadas pelo desenvolvimento temático de cada narrativa disposta em jogo, ação e narração se entrecruzam no livro de forma imbricada, como num ensaio-geral de livro. Com a positividade de um ensaio, a estrutura que permeia Rayuela é composta por fragmentos de capítulos alusivos à uma prosa de modulação jazzística. Com comparável poder de alusão, o jazz representa para o romance cortazariano um modelo ético e estético de invenção. Mais do que um elemento temático recorrente, o jazz corresponde em O jogo à própria linguagem universal da ficção.
Como num jogo labiríntico de formas, a romper com certa noção canônica de linearidade romanesca, o ensaio de romance se compõe de espaços narrativos a serem transitados pelas pontes e passagens de uma busca arquetípica pelo livro total — o centro do labirinto, a mandala búdica, o “kibbutz do desejo”. Em correspondência análoga à figura de uma escrita pela qual todos os elementos buscam uma forma, à margem das leis aristotélicas, os seus limiares formais se aproximam dos contornos de um labirinto enigmático caracterizado pela mandala — forma geométrica e dinâmica a simbolizar a relação entre o homem e o cosmos. Capaz de reunir e conciliar o céu e a terra, o externo e o interno, o rito iniciático da mandala pode ser lido em Rayuela como um objeto gerado na própria busca. Num sentido próximo a este é que o teórico ficcional Morelli chega a propor numa nota morelliana do capítulo 82: “Escrever é desenhar minha mandala e ao mesmo tempo percorrê-la”. Similarmente, a propósito, Mandala foi o primeiro título a que Julio Cortázar pensou nomear o romance que viria a se chamar Rayuela — e, em português, O jogo da amarelinha.
Ademais, de mais a mais, é possível aludir à tessitura de escrita do livro a partir dos fios que protegem Horacio Oliveira do pseudo-viajante Traveler quando eles se enfrentam numa noite tragicamente sugerida nos últimos capítulos de uma leitura linear. Em certo sentido, tais fios narrativos que ocultam Oliveira de Traveler podem igualmente ser compreendidos como a simbologia estrutural que percorre todo o seu processo de escrita. Tal como a obra-aberta duchampiana O grande vidro (1915-23) é deixada inacabada e permeável a tudo que é fortuito, a leitura final de O jogo da amarelinha pode ser lida como uma obra objetiva do acaso. Outrossim, a forma final de Rayuela alude ao experimentalismo da frase que encerra o romance-poema Nadja (1928), de André Breton: “A beleza será convulsiva ou não será”. Também, no caso de O jogo da amarelinha, é possível afirmar que a sua leitura futura será convulsiva ou não será. Parafraseando Goethe, como a Cortázar aprazia afirmar: embora seja gris toda a teoria, haverá de ser sempre verde a árvore da vida.