De sonhos e perseguições

Entre ética e estética, "A noite da espera" narra uma história de silêncios
Milton Hatoum, autor de “A noite da espera”
25/02/2018

A noite da espera, novo livro de Milton Hatoum, primeiro volume da série O lugar mais sombrio, narra a história de Martim, um jovem que, por circunstâncias familiares, se vê obrigado a trocar a vida em São Paulo por outra em Brasília no fim dos anos 1960 — período em que a ditadura militar revela sua face mais violenta no país.

Ambientado numa atmosfera estudantil, o livro tensiona política e poesia. E esse entrelaçamento da ética com a estética se dá não apenas por meio dos temas que vão ganhando corpo numa narrativa precisa, sem excessos — como é característico no autor —, ele, o entrelaçamento, se dá também na estruturação e na linguagem utilizada para contar a história de um personagem inicialmente ingênuo e despolitizado em meio a tantos personagens engajados na arte ou na política.

A narração se estrutura com Martim exilado em Paris em fins dos anos 1970 lendo anotações feitas em cadernos pelo Martim mais jovem, que viveu encontros e desencontros em Brasília uma década antes. Ora sentado num café da capital francesa, ora em um estúdio, o protagonista, que é também o narrador, insere o leitor em suas memórias. Estas vão sendo evocadas pelas anotações dos cadernos do Martim mais jovem. Na mesma tessitura em que vamos sendo envolvidos para saber da travessia amorosa do protagonista, que espera notícias da mãe distante e que ao mesmo tempo se apaixona por uma jovem de espírito livre e corajoso, Dinah, vemos crescer no romance um cenário de desmonte da universidade contestadora e de perseguição à resistência política.

Convivendo com mais seis jovens, uns mais comprometidos com a resistência política e outros com a poesia e a arte, Martim se revela no início um tanto alienado do contexto histórico e estético que o cerca na vida em Brasília. A consciência que ele parece demonstrar acerca do próprio deslocamento, somada à ausência da mãe e de notícias precisas sobre ela, fazem do personagem um ser de silêncio. E nisso consiste a complexidade bem alinhavada da poética de A noite da espera.

Martim pouco fala em seu convívio social. Ele nos conta seus (des)encontros e (in)fortúnios por meio das notas lidas no exílio. Ele se expressa com mais palavras quando escreve, haja vista as cartas para a mãe, que são bem menos lacônicas e escassas que as que recebe em resposta, assim como bem mais expressivas do que seus diálogos com os demais personagens. Quando confrontado pela vida, pelos amigos, pais de amigos, colegas de trabalho… sua fala é pouca, quase silêncio. Martim é, em geral, calado. Sua relação familiar é permeada de silêncios, seja quando mora com o pai, seja na ausência da mãe. O ciúme que sente de Dinah é remoído em silêncio. Sua relação com a cidade também só parece ganhar contornos de beleza em silêncio, como na relação com o lago Paranoá.

Mas Hatoum, a exemplo dos grandes escritores da década de 1930, onde ainda parece beber, elabora um efeito estético para o leitor de modo a misturar o silêncio de Martim, e de sua mãe, ao silêncio da própria linguagem. O silêncio ganha espessura no romance por meio das frases curtas tão bem empregadas nessa narrativa que por vezes oferece imagens de poesia. Como na passagem em que, após lermos uma carta da avó destinada a Martim, deparamos com uma nova seção e uma única e definitiva frase: “O nome da minha mãe, ausente na carta”. Ou na forma enxuta como descreve o Teatro de Brasília: “O Teatro Nacional, uma pirâmide sem vértice sob um céu escuro”. Ou ainda quando nos relata o constrangimento da vida com o pai na chegada a Brasília: “Agora, eu e meu pai juntos, nossos olhares se encontram em algum momento da noite”.

Engajamento pela poesia
Esses traços mínimos que nos remetem a instantes de poesia na narrativa de Hatoum entram em consonância com uma possível virada na falta de engajamento do protagonista. Quando Martim se mostra comprometido com ao menos um dos elementos tensionados na arena pública dos anos 1960, com a arte, é por meio da tradução de poemas que deixa de ser mero integrante do coro e passa a ser um colaborador da revista de arte dos amigos. O gesto de engajamento de Martim se dá pela poesia e não pelos movimentos estudantis de contestação política.

No entanto, a linguagem trabalhada em A noite da espera parece revelar o entrelaçamento do gesto poético e da ação política. Ou ainda, faz aparecer a indissociabilidade da atitude artística e da política, pois ambas, no traço enxuto de Hatoum, aparecem encarnadas numa linguagem que não reduz a história contada a determinantes éticos, o que poderia resultar num texto panfletário, nem apenas ao devaneio poético, que poderia diminuir a complexidade dos personagens.

Ética e estética aparecem neste livro entrelaçadas e em momento bastante oportuno, dado que a cena pública e artística no Brasil de hoje patina em maniqueísmos estanques. Muito embora o romance não tenha sido pensado para os terríveis momentos que vivemos hoje no país, uma chave de leitura que se pode potencializar com a narrativa é a própria condição entrelaçada dos gestos poéticos e políticos.

No caso desse primeiro volume de O lugar mais sombrio, acompanhamos as (des)venturas afetivas do protagonista percebendo o quanto ética e estética se entrelaçam não apenas nos movimentos e nas afetações de um personagem central, mas, acima de tudo, o quanto ética e estética encarnam na vida em sociedade por meio dos muitos antagonismos que se podem viver numa história de amor e de silêncios.

Embora Martim seja um jovem de poucas falas, são nas falas-escritas de si e dos outros que o compromisso e o embate ético e estético vão se implicando nessa narrativa que pouco se inclina a interpretações míticas, muito mais comum em outros romances de Hatoum. O universo de A noite da espera é constituído na vivência, mesmo que hesitante, com o outro. Ainda que o livro abra espaço para divagações oníricas, notamos que a vivência amorosa e poética está o tempo todo atravessada por gestos éticos de alguns de seus amigos (e de sua namorada) no compromisso com o outro. Ou seja, parece ser na teia dessa linguagem, dessa fala de si e com o outro, que se entrelaçou o poético e o político no seio dessa narrativa.

Enfim, A noite da espera faz coexistir eroticamente jovens com desejos artísticos e jovens sedentos de atitudes políticas. E o faz não para equilibrar uma equação social, mas sim para deixar aparecer a complexidade e os pontos de contradição comuns à arena pública e à vida privada.

>>> Leia entrevista com Milton Hatoum

A noite da espera
Milton Hatoum
Companhia das Letras
240 págs.
Milton Hatoum
Nasceu em Manaus (AM), em 1952. Estudou arquitetura na USP e estreou na ficção com Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano. Seu segundo romance, Dois irmãos, de 2000, mereceu outro Jabuti e foi traduzido para doze idiomas e adaptado para a televisão, teatro e quadrinhos. Com Cinzas do Norte, de 2005, Hatoum ganhou os prêmios Jabuti, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, sua primeira novela, Órfãos do Eldorado, foi adaptada para o cinema. Em 2017, recebeu do governo francês o título de Officier de L’Ordre des Arts et des Lettres.
Cristiano de Sales

É poeta e professor de literatura brasileira da UTFPR. Autor de De silêncios e demoras (2020) e Urgências que não são (2021).

Rascunho