Buenos Aires é uma cidade editada entre o monumental de suas paredes estatuárias e a coisa ruidosa da contradição urbana. Tem sons de bares, cafés, carros, artistas, protestos, variações da mesma língua, sinos e gritos de gol. Até mesmo o cemitério mistura o tempo silencioso das esculturas com o entusiasmo barulhento do turista. Tem cerveja, vinho e muita carne. Humana.
Tensão entre o moderno desmemoriado, mania de europeu, e o ameríndio que vende símbolos dos Andes, se não na calçada, na face. Até mesmo de deus, Maradona. Tem o lixo acumulado nas calçadas do centro, onde pingos de ares-condicionados nos sacaneiam e tem a média alta da sociedade cool de Palermo. Enfim, essa cidade entre o som e o silêncio, entre a plástica e a música, talvez caiba bem em um soneto, ou em 56.
Assim nos entregou Fabrício Corsaletti seu Engenheiro fantasma, que acaba de ganhar o Jabuti nas categorias poesia e livro do ano. Os contrastes catalisados num sujeito lírico inusitado, Bob Dylan, que nasce onírico, mas depois vai pintando e cantando uma paisagem bastante concreta, aparecem formalmente trabalhados por Corsaletti na tradicional forma cerimoniosa do soneto. Porém este, como já é praxe na contemporaneidade, não obedece ao esquema rítmico estrófico que nos levaria direto à tradição. Também não é o caso de vermos os versos correrem prosaicos, sintáticos. Tem algo nos sonetos desse livro que mistura a continuidade da música com a visualidade mais comum às artes plásticas.
O Dylan de Engenheiro fantasma não é apenas o músico, ou o vencedor do Nobel, é também e, com muita força, aquele que pinta quadros, “era preta a cerveja, verde a grama/ meus olhos de pintor são sempre orgânicos”. Então notamos no livro um ritmo particular, entre o estrófico (contemplativo) e o narrativo (da música canção). E tudo isso trabalhado em bem pensada poesia, terceira das artes articuladas pelo icônico sujeito lírico norte-americano inventado por Corsaletti.
A regularidade das rimas (mais para toantes) poderia depor a favor de uma leitura previsível, com respeito aos cortes de fim de versos, mas a constante variação nos acentos chama para outra cadência. Uma em que a plasticidade não será apenas visual, ou o som, apenas música, mas sim em que ambas (pintura e música) compõem a paisagem sonora contrastante. Insinuando-se ora heroico, ora sáfico, ainda parece prevalecer uma mistura nesses acentos, o que deporia a favor da tensão criada no livro, variação entre o cerimonioso e a visceralidade urbana portenha.
Na mesma esteira de coisa menos óbvia, o que se impõe de prosaico não é, por sua vez, um chamado à leitura sintática, mas sim uma estratégia de estruturação narrativa que não depende apenas dos enjambements, e sim se desenvolve pela composição de diálogos:
[…]
“você precisa ouvir Cesária Évora”
ela me diz, vendo que estou nervoso
onde enfie minha capa de chuva?
[…]
Cinema
A sequência nesses versos não é induzida pelas orações, mas sim pelo processo de edição mais semelhante ao cinema, arte da imagem em movimento. Esse tom está muito presente no Engenheiro como um todo (e aí já estaríamos falando de uma quarta arte num mesmo objeto; fenômeno do qual a poesia contemporânea nem tem mais como escapar).
O sujeito que não apenas percebe a cidade em volta, mas que também a vai pintando com cores e vozes sujas, caminha como quem veste um sobretudo monótono e calça um par de all star surrado. Come medialuna e exala álcool. Lê jornal pensando em poesia. Cata palavras em praça alheia para juntá-las num bar. Pensa uma canção… para tinta óleo.
Também tem política, sem militância. Se os modernismos e a modernização argentina passaram ao longe da exaltação andina, de seu passado ameríndio, isso não passa despercebido aos olhos do poeta/cantor/pintor exilado.
[…]
subo num ônibus sentido cais
vejo as luzes da noite na janela
ao meu lado uma índia dorme e fala
saudade dos meus filhos, dos meus pais
eu deveria acender uma vela
queimar meu passaporte e minha mala
À semelhança do que ocorre no Brasil, onde se faz de conta que indígenas integram apenas a história e as florestas, e não o presente da paisagem urbana, o poeta vê na indígena da cena um pouco do outro exílio, aquele mais semelhante ao refúgio proveniente de genocídios. Ou seja, um exílio bem menos blasé do que seu típico recolhimento de ídolo norte-americano na América do Sul. Pois o exílio dela revela a perda do passado e do futuro, “saudade dos meus filhos, dos meus pais”, bem como uma vela que não simboliza fé alguma, antes, desejo de destruição da própria história. Puxemos também pela sonoridade da rima, “janela” com “vela”, para vermos que se o poeta em seu exílio ainda vive uma possibilidade contemplativa dentro do ônibus, para a “índia” o sonho é apagamento, incêndio na história. Um terceto fortíssimo!
E ainda, como tem sido frequente na poética de Corsaletti, há em Engenheiro fantasma um lirismo agudo e melancólico, como podemos ver no soneto, a meu ver, mais bonito do livro, o de número 55, que merece ser lido na íntegra.
nuvens correm por trilhos transparentes
existe um imã entre mim e elas
sento no parapeito da janela
e deslizamos juntos, sempre em frente
rótulos podem te deixar doente
o silêncio da aranha é parte dela
trabalhei cinco meses numa tela
não falei com amigos nem parentes
minha vizinha conversa com plantas
meu barbeiro só diz o preço e a hora
Hermes levava os mortos para o Hades
eu pego a frigideira e faço a janta
de sobremesa chupo umas amoras
a chuva cai de pé feito uma grade
Grandes dramas
Aqui, o contraste não remete a cenas externas da cidade. Ele se dá no recolhimento do artista em estado melancólico, deprimido (suicida?) e manifesta o monumental na imagem das nuvens e dos grandes dramas. Evoca a mitologia grega por meio do personagem da morte. Já o ordinário aparece no jantar feito em frigideira, bem como em amoras de sobremesa. Sem chave-de-ouro, o poema se encerra em si mesmo, na dor do sujeito. Em meio à crise se manifesta também a tentativa de fazer uma obra de arte e de fronteira, entre a tela e a teia (texto), sempre em silêncio.
No entanto, vêm da solução formal das estrofes índices sutis de hesitações que vão se realizando na plasticidade do soneto — que, como já disse, não é apenas visual, mas também sonora. Qual seja, quase todas as rimas não combinam em número, vacilam entre o singular e o plural mostrando que há um descompasso interno no sujeito que, enquanto trabalha sua obra, pensa em se matar.
Mas nos enganamos se pensarmos que o tom melancólico do poema está confinado no duplo exílio do artista (exilado na cidade e, dentro desta, no ateliê), pois a vizinha e o barbeiro também compõem seus silêncios. De barulho aqui, só o que vai dentro, solidão, dor, isolamento.
Este é o penúltimo soneto do livro. Ele alerta para o fim do exílio. No derradeiro poema, vemos a partida de Buenos Aires. Como Rimbaud, poeta talvez mais moderno que os modernos, o artista sai da paisagem deixando o olho do leitor empedrado num passado monumental.
Quando sai de cena, do quadro, da canção e do poema, o sujeito lírico, catalisador das impurezas e dos contrastes da cidade em pulso, deixa o leitor desamparado diante apenas do “peso de granito”, ou seja, nem mais o sangue correndo quente nas veias, nem mais o que preenche subjetivamente um monumento. Só a pedra sem um poeta. O que, sabemos, é o fim.
>>>Leia o texto de Sabina Anzuategui sobre Engenheiro fantasma.