De Sandman e louco, todos nós temos um pouco

Em "O oceano no fim do caminho", Neil Gaiman oferece uma poderosa metáfora acerca da infância
Ilustração: Neil Gaiman por Tiago Silva
01/01/2014

Apesar das inúmeras incursões pela literatura, o nome de Neil Gaiman sempre remete ao obscuro personagem Sandman, um clássico dos quadrinhos. Foi à custa do mórbido e sinistro protagonista que o autor inglês se tornou conhecido. Nem por isso as empreitadas por entre outros estilos devem ser desconsideradas. Pelo contrário. Não à toa, são mais de duas dezenas de títulos lançados, alternando entre o universo infanto-juvenil e o adulto. Neste último segmento, inclusive, Gaiman não dava as caras desde Os filhos de Anansi, de 2005. O jejum foi quebrado, recentemente, com o lançamento de O oceano no fim do caminho.

Embora a indicação editorial seja voltada para o público adulto, nada impede que o livro seja lido por adolescentes, por exemplo. Crianças também podem se aventurar, desde que contem com a orientação dos pais. Prova disso é o narrador, um garoto de sete anos que desempenha papel de herói por entre as duzentas páginas do romance.

Como ensinou o cânone Joseph Campbell, a jornada do herói depende de começo, meio e fim; revela atributos e fraquezas; e exige catarses eventuais. Se for possível abusar de intervenções fantasiosas e movimentos fantásticos, faça-o com generosidade. Gaiman seguiu à risca os ensinamentos, e apresenta, na verdade, uma fábula. Deliciosa, digo logo, embora melancólica. Guardadas as devidas proporções, lembra, de longe, o filme O labirinto do fauno (2006), de Guillermo del Toro.

Para começo de conversa, o tal oceano no fim do caminho trata-se de um lago (como se descobre logo nas primeiras páginas) que desempenha funções oceânicas no fundo de uma fazenda, habitada pelas mulheres Hempstock (filha, mãe e avó). São elas as “fadas” da história. Para as conhecermos, precisamos pegar carona com o narrador, cuja primeira aparição se dá na fase adulta, quando ele retorna à cidade natal para participar de um funeral. Movido por memórias afetivas, acaba batendo na porta das Hempstock, onde espera encontrar respostas e reviver episódios que marcaram sua infância. E é exatamente o que ele faz.

Começo
Um bom início costuma pedir uma porrada inesperada ou algum elemento surpresa (acabo de perceber que falhei, neste aspecto). No caso de O oceano no fim do caminho, um homem morre dentro de um carro. Suicídio. Antes disso, o gato do garoto é atropelado. Não são porradas, admito, mas atiçam a curiosidade. O carro, com o morto dentro, é encontrado na frente da fazenda das Hempstock. O garoto (nosso narrador), acompanhado do pai, estava nas imediações. Surge então a menina Lettie, um pouco mais velha do que ele. Ela se oferece para cuidar do menino enquanto as diligências do episódio são resolvidas. Adentram a fazenda. Nasce a amizade. Nasce o enredo. Daí em diante, a fantasia toma as rédeas.

Em um segundo encontro, o pequeno rapaz e Lettie enfrentam a primeira aventura, repleta de criaturas que apenas uma mente criativa como a de Gaiman poderia prover (e olha que ele mal está começando). Ao retornar para casa, o garoto percebe que carregou um pequeno souvenir. Caminhando descalço pela fazenda, acabou vítima de uma “larva” que se aloja em seu pé. Um parêntese: o capítulo no qual o garoto se debruça sobre o pé e descreve a busca pelo ser que ali se encontra pode gerar incômodo àqueles que sofrem de tripofobia. Outro parêntese: os tripofóbicos reagem com aversão e asco quando diante de círculos pequenos, principalmente em superfícies orgânicas, como uma fruta ou a pele humana. No caso, a larva supramencionada se encontra dentro de um buraco na sola do pé. Se a simples descrição da fobia incomodou o leitor, o diagnóstico está claro. Fecha parênteses.

Mal sabe o menino que a criatura asquerosa ganha a forma humana (ou algo do gênero). Aqui, torna-se importante esclarecer que as andanças com Lettie são, em boa parte, uma metáfora das adversidades e traumas que cada um de nós enfrenta na infância (o livro é assumidamente semibiográfico). Os tabus dos relacionamentos. Os códigos de conduta. Os divórcios, as traições, a formação de personalidade. A falta ou o aparecimento de discernimento. (“Eu sabia que ficar pelado era errado, mas as Hempstock pareciam indiferentes à minha nudez.”) Todo esse universo se faz presente, de uma forma ou de outra, mesmo que camuflado por analogias fantasiosas.

Meio
Se há um herói (justiça seja feita, há dois: Lettie Hempstock exerce graciosamente o papel de heroína), há um vilão. Vilã, para dizer a verdade: a megera Ursula (que, talvez, seja a tal larva), uma governanta contratada pelos pais do garoto para cuidar dele e da irmã. Não demora para nos darmos conta de que Ursula representa todos os medos do menino. O embate entre eles carrega o desenvolvimento principal da obra, que investe nas questões relacionadas à ligação entre pais e filhos. Todos os frutos e perturbações.

Alternando cenários imagináveis e reais, o garoto e Lettie gladiam contra Ursula. As ferramentas e métodos de combate não são explícitos, e muito corre, também, através da imaginação do leitor. Como estamos falando de uma figura metafórica, os males que a governanta causa na esfera real (e são os piores quando considerada uma esfera familiar) são combatidos em um panorama paralelo.

Já que a narrativa principal — em primeira pessoa — fica a cargo de nosso herói, a inocência e ingenuidade intrínsecas à infância tornam a leitura leve, mesmo que perpasse por temas, digamos, maduros. Por vezes, o texto ganha ares juvenis e se afasta da atmosfera adulta, como se Gaiman nos convidasse a lê-lo como se crianças fôssemos. E somos, sob alguns aspectos.

Fim
Nada a se preocupar. Esta resenha não irá antecipar o desfecho da fantasia literária de Gaiman, embora seja previsível, principalmente conforme a leitura avança. Ele pouco importa. O propósito da obra não passa por uma surpresa final ou por um acontecimento apoteótico. Gaiman propõe uma análise, no sentido terapêutico. Um convite para uma auto-reflexão. Impossível não pensarmos nos nossos receios, nos fantasmas do passado, em nossa construção (ou desconstrução).

No mais, um entretenimento cheio de iguarias. Algumas para serem levadas a sério, outras apenas para deleite. O principal mérito do criador de Sandman é nos transportar para as recordações da infância. As descrições salivam a mente e o paladar. Às vezes, literalmente: “Lettie preparou panquecas para nós numa grande chapa de metal, no fogão da cozinha. Eram finas como papel, e assim que ficavam prontas Lettie espremia limão-siciliano em cima delas, acrescentava no meio uma colherada de geléia de ameixa e as enrolava bem enroladinhas, iguais a um charuto”. Como resistir? Entregue-se e deguste à vontade.

O oceano no fim do caminho
Neil Gaiman
Trad.: Renata Pettengill
Intrínseca
208 págs.
Neil Gaiman
Nasceu na Inglaterra, mas vive nos Estados Unidos. Jornalista de formação, chamou a atenção pela facilidade em criar universos paralelos e pela escrita criativa. Acabou convocado para o mundo dos quadrinhos. Criou a série Sandman, um clássico do gênero, cultuada em todo o mundo. Com obras voltadas para o segmento infantil e adulto, Gaiman trilha uma trajetória exitosa na literatura. Desde 2005 não escrevia um romance adulto. O oceano no fim do caminho nasceu a partir de uma troca de correspondências com a esposa, que encarava uma temporada na Austrália, longe de casa.
Diego Ponce de Leon

Carioca, foi professor por mais de uma década. No Correio Braziliense, escreve para o caderno de Cultura, além de ser crítico de teatro e colunista do periódico.

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