Quando uma mulher escreve, fala-se em literatura feminina; quando o autor é homem, fala-se genericamente em literatura, como se os escritos masculinos fossem o gênero, e os femininos, uma ramificação. Afinal de contas, o que seria uma escrita masculina? Um livro de Rubem Fonseca, talvez? Palavrões, violência, homens rudes. E a literatura feminina? Clarice ou Adélia Prado e suas longas e sensíveis digressões, capazes de toda a metafísica a partir de um mero fato doméstico? O termo “literatura feminina” é sexista, como se houvesse uma outra literatura com qual as mulheres dialogassem, ou, pior ainda, como se houvesse uma literatura anterior, a partir da qual brotam os textos femininos. Fácil alegoria, a literatura feminina seria a costela de Adão da literatura geral, a masculina.
Pois a primeira contravenção de Guiomar de Grammont é criar uma personagem feminina que mais parece um dos rudes homens de Rubem Fonseca. Isaura, a protagonista do conto de abertura de Sudário, O diário de Medéia, é uma mulher embrutecida:
Amanhã faço café, arrumo as camas e saio. Trabalho como todas as mulheres classe média do meu tempo. Quero que se fodam os políticos. Tenho raiva de viver em um tempo em que não há mais terrorismo, porque queria matar todos com as balas quentes da minha decepção. Bato uma máquina fedorenta, vou para a cama com meu chefe todas as sextas-feiras.
Já não há espaço para a mulher exposta em sua sensibilidade, as mulheres de Guiomar são criaturas ácidas, mordidas, reativas. Aqui, a máxima vive la difference dá lugar à tão propalada igualdade, não uma igualdade de gênero, nesse aspecto as diferenças estão devidamente demarcadas, mas uma igualdade de postura diante do mundo. O conto seguinte é o relato de uma “vampira acadêmica” e seu colega. O esporte de ambos é capturar vítimas indefesas, como faziam Catherine Deneuve e David Bowie em Fome de viver, e sugar suas almas. O par, que não é um casal, pois eles mesmos são desprovidos de alma e, por isso incapazes de amar, é da geração da “repressão, da crença cega no marxismo, da contracultura, da maconha e da pílula”. Um tempo que agora está no passado. O sonho que acabou. Esvaziados de suas crenças, aplicam-se com método a capturar alunos inocentes, encharcá-los de teoria filosófica e deixá-los por fim imersos num mundo de ecos de discursos acadêmicos, lotados de conhecimento mas vazios de sabedoria e existência — “o doente termina por julgar tudo que o cerca, até a si mesmo, puras abstrações”. A cura seria o sexo, como um mergulho em algo primitivo, vital, real. Mas o vazio está incorporado ao ser dessas criaturas, mesmo o sexo em estado bruto não traz a saciedade. Não há amor nessas relações.
A ausência do amor, ou a sua impossibilidade, é um dos traços mais amargos dos contos de Guiomar. O conto-título, Sudário, além de ser o mais belo de todos, é exemplar dessa impossibilidade. Nele, um pintor maduro, doente terminal, refugia-se em uma pequena cidade e recebe, das mãos do padre, uma jovem para cuidar dele e de sua casa. O que há de crueza nos demais, há de delicadeza neste. “Um pequeno botão branco era o soldado que guardava aquela trincheira desconhecida” é a frase de abertura, de uma sensualidade recatada e oferecida. O botão de Maria, ao mesmo tempo em que a protege, convida. Os subterfúgios do pintor para roçar os dedos em algum ponto da pele da virgem são superados pelo recolhimento provocante da jovem. A relação se transforma em disputa dissimulada e nem mesmo a pura Maria escapa de seu destino de dominatrix. A impossibilidade do amor dá lugar a uma forma delicada de sadomasoquismo.
Dominação e disputa são a base da maioria das relações contidas nas histórias de Guiomar, temas recorrente em boa parte da prosa contemporânea. A impressão que tenho, a partir de leituras de livros de autores recentes, é que essas relações, além de tema dominante, têm sido tratadas dentro de um universo pessoal por demais limitado. Pessoalmente, sinto falta de uma busca por uma literatura mais ampla, ambiciosa de força dramática, ou mesmo, trágica. Guiomar está em busca de uma literatura maior, mas escorrega em frases clichês como no conto O tempo: “(…) quando nos esquivamos ao desejo, ele volta com intensidade maior ainda”, ou então, “o perfume de seu corpo me alucinava”. Um outro aspecto que dilui a força de seus textos são alguns momentos de explicação das metáforas, como na frase “Onde os relógios pendem flácidos, esvaziados de sentido”, do conto O fruto do vosso ventre. Nesse caso, a segunda parte da frase poderia ser eliminada, deixando ao leitor o trabalho de preencher a imagem de relógios flácidos com os sentidos, ou ausência deles, que bem entendesse. Explicar uma metáfora, ou desdobrá-la demais, reduz o trabalho do leitor e o coloca numa posição de passividade. Foi no conto O fruto do vosso ventre que percebi esse problema com mais clareza. Tudo explicado demais, linear demais e, portanto, previsível. O conto, no entanto, é salvo por seu final. Um final esperável, mas nem por isso menos belo. A perversão e o incesto são descritos com ternura, mostram-se frutos da pureza de um sentimento original de amor perdido, proibido. Em instantes assim, Guiomar revela que a feminilidade é uma característica difícil de ser alcançada por uma literatura masculina. O que não quer dizer que homens não possam criar com feminilidade; podemos sim, é só pensar em Chico Buarque, por exemplo. Portanto, as diferenças deixam de ser uma questão do sexo do autor e passam a ser um traço de sensibilidade artística. Desta forma, falar de literatura feminina escrita por uma mulher, ou masculina, escrita por um homem é algo que perde o sentido.
Igualdade
A questão, no entanto, não é tão simples. Gostaria que uma mulher como Guiomar de Grammont respondesse à seguinte pergunta: o desejo feminino é diferente do desejo masculino? Uma variante da célebre questão atribuída a Freud, “afinal, o que querem as mulheres?”. Guiomar pode me responder dizendo que a resposta está em seus escritos. O que encontro neles, no entanto, é o que as mulheres não querem: ser iguais aos homens, por mais que nossa sociedade as estejam empurrando para isso, na forma da competição, da busca material, do esvaziamento do espírito.
Em um belo texto encontrado no site www.leiabrasil.org.br, Guiomar fala do poder de transformação da literatura, defendendo a “proibição da leitura” por sua força subversiva:
O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões menos incômodas. É esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há correntes, prisões tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura?
Vivemos numa sociedade por demais masculina, com excesso de testosterona. Infelizmente, as conquistas do feminismo têm se mostrado insuficientes para suavizar a competição humilhante, a violência e imposição do mais forte, a repressão dos sentimentos. Para ocupar seu lugar no mercado, muitas vezes as mulheres estão tendo que abrir mão do que se convencionou chamar de “feminilidade”, para adotar uma postura mais agressiva. Nesta linha, surge a fêmea dominatrix, das fantasias sadomasoquistas. A imagem é recorrente e culmina com o homem, literalmente, aos pés da mulher: “Glória, ela chamava Glória. Ria quando eu lhe pedia que andasse sobre mim, machucando minha pele com seus saltos agudos”. As relações não são mais de amantes de frente um para o outro, não há franqueza ou igualdade, muito menos ternura. Predomina o esforço pela posse e pelo controle e, com isso, o desencontro, a separação e a perda. O resultado é a busca por mais.
Em 1993, Guiomar foi a vencedora do prêmio cubano Casa de las Américas, na categoria de literatura brasileira, com o livro O fruto do vosso ventre, agora incorporado a este Sudário. A organização deste livro é interessante pois mostra a evolução da escritora. Os contos de O fruto… têm uma marca de época, recendem a anos 80 e até mesmo 70. O que eu considerei escorregões estilísticos mais acima, sintomaticamente estão mais presentes nestes dez primeiros contos do que nos nove subseqüentes, agrupados sob o título geral do conto chefe, Sudário.
Na contracapa, Augusto Massi remete Guiomar a Nelson Rodrigues e a Dalton Trevisan. Eu me lembrei de Rubem Fonseca. Todos eles, expoentes do que se pode chamar da literatura masculina. Guiomar promove essa inversão em sua escrita de mulher. De fato, estão lá os temas como o incesto, a traição miúda, a mentalidade suburbana. Além disso, encontramos a prosa direta, o texto seco, ou seja, a ausência de floreios e rebusques consagrada em nossa literatura recente. O passo além, no entanto, é justamente a descrição do jogo mulher x homem, e não mulher + homem, sob a ótica feminina:
(..) Descobri que a sedução mais prazerosa é aquela que se exerce sobre um espírito livre, um homem emancipado de mim, encantado pela alquimia das minhas poções, porém, não dissoluto em sua vontade.
Maquiavel exortava o Príncipe a se adequar às representações de virtude do povo que pretendia dominar. Eu me fantasiava para ser a representação ideal para as expectativas dos homens. Aos poucos, percebia, aterrorizada, que eu não existia mais, não passava de uma névoa. Essas artimanhas, contudo, não fui eu que as criei, são feitiçarias que as mulheres passam milenarmente umas para as outras. As não iniciadas, mesmo conhecendo o potencial autodestrutivo que esse poder oculta, dariam tudo para obtê-lo.
Então, é disso que se trata. O preço da dominação é a autodestruição, não raro, arrastando consigo o próprio objeto do desejo de domínio. Um universo que considero mais amplo do que o dos autores masculinos, ainda que reconheça nos escritores citados uma superioridade estilística em textos mais virulentos e intensos. Afinal de contas, estamos falando de Nelson Rodrigues, Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, autores paradigmáticos de nossa literatura recente, que varreram por completo traços como compaixão e ternura de suas histórias. Não estou dizendo que este seja o caminho a ser seguido por Guiomar, aliás, não cabe a ninguém dizer a um escritor que caminho ele deve seguir. Este caminho acontece por si, a partir de sua história pessoal. O que podemos fazer, como leitores, é realçar características que nos agradam ou não, extrair significados e procurar entender os fundamentos que nos levam a gostar ou não de determinado escrito. Justamente o que dá o tom pessoal aos contos de Guiomar é a permanência desses sentimentos revestidos de maternidade, mas que se revelam nas situações mais extremas, como no beijo incestuoso de mãe e filho ou no momento da submissão física ao masoquismo.
O último conto do livro, Lúcifer, surpreende ao, aparentemente, fugir completamente dos temas anteriores. Neste conto surge a filósofa Guiomar em uma pesquisa sobre a origem do mal. Mas é um conto que esclarece o que vem sugerido nos demais. A origem do mal é o desejo de dominação, a vítima que se deixa derrotar na verdade, é o verdadeiro algoz que leva o dominador ao abismo com sua aparente fraqueza. Um jogo em que o perdedor joga tão bem que jamais deixa o suposto vencedor saber que a vitória, na verdade, está nessa derrota. E assim nós nos entregamos ao empenho pela dominação, acreditando que a aquisição do conhecimento, do poder, das coisas é a origem da vitória, optando por deixar nossas almas pelo caminho. A transformação que a literatura pode nos ajudar a concretizar é o entendimento de que a obtenção do bem exige um esforço muito maior do que a entrega fácil de nossas almas ao capeta.