Um bom livro é aquele que te carrega para dentro de uma casa abandonada e escura. Sabemos que ali encontraremos os cômodos, cada qual divididos de diferentes formas, comprimentos e larguras, sabemos que naquela casa haverá banheiro, quartos, cozinha, sala, corredores, etc. O que a convenção social nos demonstrou. Ou o que a arquitetura em sua história propôs. Mas, caminhando virgens no breu, não conseguiremos identificar, à primeira impressão, como estão dispostos esses cômodos. Nem mesmo saberemos chegar nesses espaços. Confortáveis ou não, só teremos noções quando o corpo sentir e responder. Para um leitor, as histórias narradas em O sêmen do rinoceronte branco, de Cinthia Kriemler, Aranhas, de Carlos Henrique Schroeder, e Rua de dentro, de Marcelo Moutinho, todos lançados em 2020, ultrapassam as conotações atribuídas aos gêneros literários, atravessando as páginas, transformando a leitura em vibrações corporais e mentais.
Roland Barthes, em seu artigo Escrever a leitura, presente em O rumor da língua (1984), atribuiu que “ler é fazer o nosso corpo trabalhar”. Ou também, no mesmo artigo, mais abrangente, o autor destacou: “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de ideias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça?”. Foi o que aconteceu, diversas vezes, com este que vos escreve, ao acompanhar as leituras das três obras aqui analisadas.
Incômodo na alma
No decorrer dos anos, em debates incansáveis, ensaios intermináveis, questionamentos em entrevistas e inúmeros estudos, somos abordados para responder a diferença de crônica e conto. Essa discussão permeia a crítica e sua necessidade de categorizar os escritos de autoras e autores — joga no Google para se certificar. Já escutei diversas definições, algumas bastante humoradas, como a de Ignácio de Loyola Brandão, em que ele diz que a distinção de conto e crônica é, justamente, o prazo de entrega. Para mim, a definição perfeita é de autoria da escritora Cidinha da Silva, ao remeter a Julio Cortázar, em seu livro O homem azul do deserto (2018). No texto Cronista analógica de um tempo digital, a autora estabeleceu: “[…] o romance ganha o leitor por pontos e o conto, por nocaute, a crônica esgrima e vence por W.O.”. E por que escrevi tudo isso? Para apontar que o mais recente livro de Cinthia Kriemler, O sêmen do rinoceronte branco, é marca da plena criatividade da autora em manusear o tempo e espaço, elaborar complexidade nas personagens, trazer os fatos atuais para as páginas, fruto de uma observadora das vidas e histórias da nossa sociedade.
Uma amostra desta capacidade literária de Kriemler está no texto que leva o nome do livro. Nele, somos levados para 2018 e apresentados ao relato da morte do último macho da espécie de rinocerontes brancos. Uma narrativa atenta e detalhista em desenvolver os últimos suspiros de Sudan — o último rinoceronte branco, aos 45 anos, cujo sêmen será guardado para futuramente ser utilizado.
Enquanto vamos acompanhando a descrição, Kriemler dá uma redobra à narrativa, amplia, e nos revela as diversas situações problemáticas tendo como mote a violência humana, trazendo a já citada história do último exemplar da espécie de rinocerontes brancos, passando por casos de estupros, assim como a da morte de Ágatha Vitória pela polícia no Morro do Alemão.
Uma análise precisa da hostilidade atual que permeia a humanidade, composta pela forma literária de Kriemler, em uma escrita calcada na crítica social e expressada para refletir e discutir o agora:
Podemos fechar os olhos. Mais uma vez. Essa é a nossa expertise. Podemos desligar a TV, tampar os ouvidos, cobrir a cabeça. Podemos nos mudar para Paris. Ou para a Finlândia. Quando voltarmos, tudo estará terminado. E olharemos para o genocídio de meninas e meninos pobres com toda a piedade hipócrita que nos foi ensinada pelos nossos pais e pelas nossas igrejas. E nos sentaremos com um copo de cerveja, de vinho ou de uísque entre amigos que também terão acabado de voltar de Berlim ou de Barcelona. E discutiremos planos para reverter a extinção.
Em nossos planos, só uma falha. Não temos o sêmen do rinoceronte branco.
E Cinthia Kriemler não para aqui. A obra, com 27 contos, retrata as complexas atmosferas da contemporaneidade, ora contemplativos, ora intensificados. Casos estes como em Chiaroscuro, que abre o livro: “Não tem mais madrugada, Imaculada. Não tem, Fabrício — o seu corpo ainda está na minha cama. Quando você chegar — há de chegar, há de chegar, há de chegar —, vai trazer cheiro de sangue para os nossos lençóis de alfazema e de amor. Conspurcação”.
As conturbadas relações familiares, exemplo de Assim: “Sabe esta cicatriz no meu rosto? Última lembrança da minha mãe bêbada. Deixei cair sem querer uma das suas garrafas malditas. Ela me cortou com o gargalo quebrado. Afundou, afundou, afundou até eu desmaiar”.
Os tantos casos de preconceito, intolerância e perseguição às religiões de matrizes africanas, presente no conto Em nome: “Está amarrado em nome de Jesus! A cada altar quebrado. A cada estátua estilhaçada. A cada flor pisada. A cada soco e pontapé que deram na menina mais linda do terreiro. A filha mais querida de Ogum. Mas foi em nome de Jesus”.
A iminência da morte em Dias de contagem: “A morte, esse lugar sem instruções. Onde estão as criaturas do meu afeto. A vida, esta passagem estreita, autofágica”.
Além da solidão na velhice, apontado em Mesa posta: “Fui eu que propus o asilo. E repeti a ideia dia e noite, como um mantra de ataque. Mas os mantras de defesa de mamãe foram mais imperativos. Os velhos são doentes de solidão”.
Os enredos de O sêmen do rinoceronte branco são muito bem desenvolvidos por uma autora que tem consciência da dor que a contemporaneidade proporciona no nosso comportamento. Observações e escritas que causam efeitos colaterais. Um incômodo na alma, nos músculos. Kriemler apreende o cotidiano, o hoje, a desolação e a orfandade sentimental, a escassez empática e a desconfortante desigualdade social. Sua escrita aborda a latente expressão íntima e degenerada do sujeito atual. O sujeito atual decidido a atuar pela falsa solução de que “a gente dá um jeito na dor”.
Teias literárias
O poeta Francisco Alvim escreveu: “Quer ver?/ escuta”. Esta é a melhor definição para a leitura de Aranhas, novo livro de Carlos Henrique Schroeder, ou melhor: quer ver? Escute os contos que fazem parte desta obra. O autor, como um aracnídeo descido do teto, por um fio de seda-escrita fabricada por ele, chega ao nosso pé do ouvido e narra essas histórias, mexendo com os sentidos, emoções. Incomodando os nossos nervos cerebrais. E, quando estamos embriagados com suas falas, vem Schroeder e aplica o veneno. Este veneno se manifesta logo no conto que abre o livro, Viúva-negra. Um relato de uma noite de um casal, a priori rotineira, até o autor moldar sua teia. Volto à imagem, ambos as personagens degustando sua pizza e apreciando o seriado, almejando uma viagem turística pela Itália. A narração, em sua grande parte por diálogos, prova a habilidade de Schroeder em falar para vermos, pronto para levantar a quelícera e aplicar o veneno, cujo efeito fatal sentimos ao fim da leitura.
E ficaram assim, felizes, mastigando seus pedaços de pizza enquanto assistiam ao seu seriado favorito, e se imaginavam no Coliseu, na Fontana di Trevi, no Vaticano. O problema é que o câncer estava indeciso e não sabia qual dos dois levar primeiro.
“Quer o último pedaço?”
Um exemplo primordial da morfologia do livro de Schroeder começa por ler o exoesqueleto dos contos, uma forma do autor difundir seus membros em nossas mentes. Nos domar a partir das teias em torno de nossas interpretações. Agasalha o mistério, à espreita, escondida nas paredes íntimas das personagens. Constrói suas sedas complexas e, assim, fica pronta para capturar o alimento, ou seja, a leitora e o leitor. Confundem-se de que as teias criadas na escrita de Schroeder são de tamanhos únicos.
Encontramos pelo livro textos breves e longos, o que demonstra a admirável capacidade do autor em produzir ótimas narrativas. Vide pelos enredos: De parede, Aranha-lobo, Ciborgue, De rato, Saltadora, Lince Americana, Marrom, Cara de diabo, e a já citada Viúva-negra. As espécies sendo aspirações para descrever e criticar a conduta da rotina humana, em um emaranhado de boas ideias sendo desenvolvidas em ótimas histórias. São contos que proporcionam o choque emocional, trazendo os desconhecidos destas vagas atitudes sombrias em que as aranhas-enredos de Schroeder trazem à luz, como neste trecho de De parede.
Eu a vejo passar aqui na rua quase todos os dias e cerro minhas mãos, e chego a ouvir o som oco dos meus socos no seu rosto. Um dia ela me viu e cumprimentou. Respondi com um aceno de cabeça. A coisa que mais odeio na Jéssica é ela ser uma sapatona grande e forte. Eu também sou uma sapatona grande e forte, mas não me odeio. Tenho vontade de lhe dar uma boa surra. Uns socos. Uns chutes. Uns tapaços naquele cabelo curtinho ou mesmo arrancar-lhe uma orelha com uma mordida. Pegar uma cinta e dar-lhe nas costas. Ou uns beijos.
Somos presas fáceis na escrita de Schroeder. Somos aquele inseto do começo, ao pé do ouvido, em meio à sua vasta teia de seda literária, muito bem tecida por uma fiandeira que potencializa a forma de contar uma história. Nos seduz e nos mata. Ou melhor, na obra, Carlos Henrique Schroeder sai de nossos ouvidos e aplica o veneno paralisante. Não satisfeito, aguarda fazer o efeito para, logo em seguida, nos devorar. Quer ver?
Cidade Maravilhosa
Já percebeu que um escritor pode ser melhor guia de uma cidade do que um simples mapa? Sou mais de experimentar as descrições das calçadas, esquinas, curvas, casas geométricas, paralelepípedos que nos levam às vielas, comunidades, plantações, becos, vivências pelos autores do que por um mapa aberto com todas as coordenadas definidas. Em seu espaço e tempo, escritores e escritoras orientam os percursos geográficas na literatura: São Paulo de João Antônio, Região do Cariri de Jarid Arraes, Tejucupapo de Marilene Felinto, Porto Alegre de Paulo Scott, Moçambique de Ungulani Ba Ka Khosa, Recife de Miró da Muribeca, Porto Velho de Elizeu Braga, Curitiba de Manoel Carlos Karam, Jamaica de Nicole Dennis-Benn, Minas Gerais de Conceição Evaristo e Cidinha da Silva. Atualmente, pode-se considerar Marcelo Moutinho o nosso guia pelo Rio de Janeiro.
Rua de dentro é um marco da geografia literária de Moutinho, a calçada colada com caquinhos de porcelanato, presente na capa do livro, é uma metáfora dos fragmentos narrativos e personagens abordados durante as treze histórias. O mais inventivo na escrita de Moutinho é a sua articulação com o tempo na literatura. Este apontamento está muito bem construído no conto de abertura da obra: Purpurina. Nele, somos levados às tantas fases na vida da protagonista, a travesti Camile. Com cortes temporais abruptos, mas que não deixam a leitura incomodada, Moutinho seleciona fachos de lembranças marcantes da personagem. Os percursos urbanos obscuros e escondidos são iluminados pela lanterna da protagonista. Nesta condução narrativa pelo túnel escuro de um Rio de Janeiro enigmático, presenciamos os diversos momentos de Camile, desde a infância até o trabalho na prostituição, além de trazer reflexões relacionadas às condições preconceituosas:
— Travesti é igual purpurina, brilha e incomoda — me disse a Luana numa noite de pista na Lapa. Com o passar dos anos, entendi que a gente está invariavelmente na borda. Da natureza, dos limites, das interdições, das possibilidades, dos significados. Da alegria, talvez.
Outra história marcante na obra é Militante. Moutinho retrata um dia na vida de uma mulher que trabalha na campanha eleitoral de um político, mas sempre com o pensamento no cachê que sua jornada de trabalho proporcionou. Uma explanação dos descasos político e social expostos às circunstâncias de diversos trabalhadores durante as eleições:
A gente trabalhou por quase quinze horas seguidas, à base de sanduíche e refresco de laranja. Sem muxoxo ou cara feia. Mas deu ruim. Um fulano lá acabou vencendo e nosso dinheiro nunca chegou. Não tem papel, assinatura, contrato, é tudo de boca. Vou cobrar de quem?
No conto, Moutinho não prioriza a corrida política pelo escopo do candidato. Aqui, o autor segue a fala dos sujeitos que estão atrás das cortinas dos palanques, entrando com tudo no período eleitoral, no intuito de obter, assim, o ganha pão, e sendo, muitas vezes, desvalorizados da função e sem garantias de salários.
Por via das dúvidas, é melhor mesmo que nosso candidato ganhe. Recebendo o pagamento, tô mais que satisfeita. Resolvo as pendências, reforço a despensa e ainda faço uma graça com o Uéslei. Melhor não arriscar, não. Eleição é fogo. Mas na próxima, graças a Deus, a Giovana já vai ser maior de idade. Pra segurar bandeira também e dar uma moral nas despesas da casa.
Um exemplo da construção de uma narrativa precisa, em que acompanhamos as duas perspectivas dos acontecimentos desenvolvidos pela trama, está em Memória da chuva. Para mim, o conto que mais demonstra o ótimo manuseio literário de Moutinho. Estão nas entrelinhas as pluralidades do debate do enorme distanciamento social na cidade carioca ao contar a história de dois amigos: Maicon é morador do Santa Marta e Rafael é morador de um condomínio de classe média. O curioso, e talvez o pulo do gato, na forma de desenvolvimento do conto é a organização dos fatos que preocupam o pai de Rafael, desconstruindo e apontando hipocrisias em torno de seu discurso:
Raimundo conhece o amigo de seu filho. Levou-o, por mais de uma ocasião, para passar o domingo na piscina do condomínio do Palazzo São Clemente. Ele e a esposa, Helena, têm carinho por Maicon e acham importante Rafael se relacionar com pessoas de fora de seu estrato social.
A trama fica mais particular, no aspecto crítico, quando Maicon convida Rafael para passar um final de semana em sua casa, preocupando Raimundo, pontuando importantes debates sobre as desinformações que são fornecidas em relação às comunidades da cidade, assim como a questão geracional engendradas nos estratos sociais pejorativamente herdados durante a história do país:
— Se ele pode vir aqui, por que não posso ir lá?
— É diferente, Rafael.
— Mas diferente por quê?
Os questionamentos de Rafael são bem trabalhados por Moutinho, pois o autor não se distancia do questionamento da criança e da formação de sua consciência. Para a personagem, o importante é partilhar com o amigo as brincadeiras, como soltar pipa, jogar futebol — desejos deslocados do pensamento segregador do pai.
Rafael subiu a ladeira principal excitado pela paisagem quase barroca do Santa Marta. Biroscas, barracas de comida japonesa e biscoito, uma pet shop vendendo cartões-postais, Kombis de cachorro-quente, o televisor de tubo, ligado e apoiado sobre uma cadeira em plena calçada, um carro abandonado, a murada colorida de grafite e formas geométricas.
No desenrolar deste conto, notamos que Rafael queria apenas ficar perto do amigo, ter novas experiências, sem observar o poder aquisitivo dos genitores de Maicon. São os simples momentos causados pela sua jovem vivência que o distinguirá das suposições e medos proporcionados por um corpo social que resvala na rejeição sistemática em meio à geografia urbana.
Rua de dentro é a cidade do Rio de Janeiro na observação e imaginário de Marcelo Moutinho. Cada pessoa tem em seu interior uma cidade, moradia qualquer, onde constrói as engrenagens que ligam as memórias das dores, dos amores, das solidões, das angústias, das mortes, dos vestígios que contemplam a atual literatura, como nos contos Um dia qualquer, Ocorrência, Fada do Dente, Cheiro, Comida a quilo e Endless love.
Marcelo Moutinho já é um excelente cronista e, agora, com Rua de Dentro, seu quinto livro de contos, consagra-se também como um ótimo contista. Como apontado no começo, na geografia literária, a exemplo do que ocorre nos trabalhos de Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Sant’Anna, Eliana Alves Cruz e Paulo Lins, o Rio de Janeiro de Moutinho garante notoriedade por meio de suas ruas e de seus personagens, guiando-nos, sem precisar de mapas, cada vez mais para dentro da cidade.
O sêmen do rinoceronte branco
Cinthia Kriemler
Patuá
128 págs.