Dizem que o século 20 começou em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, e terminou em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Foi um século deveras curto, mas entre estes 75 anos vimos estourar ao menos duas guerras de amplitudes mundiais, além de uma porção de regimes totalitaristas que deixaram outros milhões de mortos pelo caminho. No Brasil, quando estourou a Primeira Guerra, o País ensaiava os primeiros passos da industrialização, que só aconteceria mesmo na década de 30. Teríamos Getúlio governando por decreto e depois através de uma suspeita democracia. Tivemos Getúlio levando um balaço no peito. Tivemos Jango, tivemos os milicos. A luta armada, que rende livros até hoje. A redemocratização e a Era Collor.
Por tudo isso passou Pedro Nava, um homem que certamente vararia o século 20, não fosse o ímpeto suicida que lhe tirou a vida em maio de 1984. Homem que nasceu há quase cem longos anos, em 1903, num tempo de escarradeiras, Pedro Nava deixou um verdadeiro monumento à língua portuguesa. Não um livro, mas seis, que não só são suas memórias, como anunciam as capas, mas que também são um compêndio particular deste atribulado século.
Ou mais, já que Pedro Nava não se contenta, desde seu primeiro Baú de Ossos, com seu tempo. Vai buscar, portanto, nas lendas de família sua origem, para assim, segundo o próprio autor, descobrir melhor a si mesmo e àqueles que o rodeiam. Ler Baú de Ossos, o primeiro volume das memórias do autor, é descobrir um Brasil que os tratados de sociologia jamais conseguirão transmitir com seu jargão ininteligível e suas teorias autistas.
Minha tese, corroborada por um amigo aqui de Curitiba, é de que Pedro Nava não deve mais ser considerado assim como um apêndice da nossa literatura. Sim, porque toda vez que se fala no escritor mineiro tem-se que colocar o aposto “memorialista”, como se a matéria-prima de seus livros fosse de menor valia que o de outro mineiro, Guimarães Rosa, por exemplo. Assim é que Nava passa de geração em geração: um homem que contou aquilo que estava a sua mão e que, por isso, seria “tão-somente” o maior memorialista da nossa minguada literatura.
Não. Pedro Nava foi um dos maiores romancistas que tivemos, e a hexologia que começa com Baú de Ossos deve ser lida assim: como um longo romance familiar, à moda de um Proust, mas romanescamente.
Muito já se disse e redisse sobre a influência de Proust na obra de Pedro Nava. O próprio autor acusava a presença do escritor francês em seus livros. Isso, contudo, não significa que Pedro Nava deva ser considerado um escritor menor porque “copia” Proust. Pelo contrário, deve ser louvado porque exalta um gênero que até então era relegado somente a volumes caseiros distribuídos a sobrenomes centenários.
Ao apegar-se à memória, somente aos 65 anos, Pedro Nava percebeu que elas não seriam suficientemente interessantes para torná-lo um grande escritor. Acrescentou, pois, a fatos corriqueiros de sua família os grandes episódios do País, tudo envolto em uma massa carregada de barroquismo e lirismo. Desta mistura resulta um dos maiores romances brasileiros de todos os tempos. Nava criou, neste caldeirão, uma espécie de realismo fantástico intimista, familiar, de deixar qualquer García Márquez de queixo caído. Como diria meu porteiro, naquela sua sapiência tão exata: nada é tão real quanto a vida real. Cá estamos diante da fantástica realidade da vida, narrada nos seis volumes das memórias de Pedro Nava.
Falei em García Márquez, mas sempre que se toca no nome do juizforano Pedro Nava fala-se em Proust. Wilson Martins diz que avaliar a obra de Nava é analisar até que ponto ela está embebida em Proust. Com todo respeito ao mestre Martins, mas não concordo que o crivo de um escritor do porte de Nava tenha de, necessariamente, passar pela sabatina francesa. Há muito tempo venho sugerindo a alguns amigos que tentem, por exemplo, ler Guimarães Rosa sem se lembrar de Joyce; o mesmo serve para Nava que, a despeito de sua influência proustiana, tem fôlego de sobra para não parecer apenas um similar tardio tupiniquim.
Os seis volumes que compõem as memórias de Pedro Nava (Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo-das-Trevas, O Círio Perfeito) servem, ainda, para elucidar um mistério: o suicídio do autor. Nava era um homem bastante alegre em suas aparições públicas. Certa vez o vi num programa de entrevista comandado por Otto Lara Resende. Falava ele aos jovens de então. Suas mensagens eram cheias de otimismo. O programa, se não me engano, era de 1979; seis anos mais tarde Nava se mataria com um tiro na têmpora. Dizem que porque o estavam chantageando, ameaçando-o de denunciar à opinião pública sua possível homossexualidade. Nava tinha 80 anos quando se matou.
O fato é irrelevante para a obra de Nava e só interessa a biógrafos bisbilhoteiros ou fofoqueiros literários (mea culpa?). Aqui cito-o para que algum leitor desprevenido, desconhecedor da magnífica obra de Pedro Nava, venha a se interessar por ela, através desde mistério-que-não-é-mistério,
Aliás, isto vem de encontro a outro assunto de que queria tratar neste texto: o ensino de literatura. Jamais ouvi, até a faculdade, o nome de Pedro Nava. Sobre os escritores mineiros que dominaram o cenário literário nacional no século 20, escutava falar de Rubem Braga, Drummond, Sabino, Rosa; mas Pedro Nava sempre foi mantido de lado. E não se trata de má-vontade dos professores. É que o ensino de literatura no Brasil segue uma planilha, uma espécie de esquematização de tal forma fixa que autores entre-gêneros como Pedro Nava ficam excluídos.
Não tenho dúvidas e encerro aqui este texto que já vai longe: Pedro Nava pode até ter sido o maior memorialista brasileiro; mas foi também, sem dúvida, um dos maiores romancistas de nossa literatura. Sua matéria-prima foram estas coisas comezinhas, estes diálogos para os quais não se dá bola, entre a cozinha e a sala, na alcova e no alpendre, entre os cheiros de um bom tutu à mineira.
Que serve aqui, por analogia, à distante madeleine no chá frio Proust.