De quando tínhamos a palavra

A revista Joaquim, dirigida por Dalton Trevisan, ganha reedição para mostrar que o Paraná já fez parte, pasmem!, da vanguarda nacional
Dalton Trevisan, autor de “Pico na veia”
01/01/2001

Era o pintor surrealista  e show-man Salvador Dalí quem se dizia a favor das guerras, porque elas atiçariam o que o homem tem de melhor. Analisando-se os períodos pós-guerras, tem-se mesmo esta impressão de explosão criativa. Não é à toa que a década de 20 do século XX ainda é considerada a mais promissora para a literatura mundial, forno do tempo de onde saíram obras como Ulysses e A Montanha Mágica, além de toda uma geração, a lost generation, que inclui nomes como F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Dorothy Parker, entre outros.

No Brasil, teve mais impacto a Segunda do que a primeira guerra, talvez por nosso proclamado provincianismo. Fato é que, apesar da Semana de Arte Moderna de 22, o modernismo como tal só veio a se concretizar no Brasil na década de 40, atingindo seu apogeu na década seguinte. E a partir daí, é preciso dizer, entrando em franca decadência.

Há quem chame esta geração de escritores nascidos dos ventos radioativos de Hiroshima de “Segunda geração do modernismo brasileiro. São nomes que os vestibulandos têm de decorar Lêdo Ivo, José Paulo Paes, Guimarães Rosa, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Murilo Rubião. Entre eles, um menino desbocado e cheio do entusiasmo da juventude, que acabava de criar uma revista que se tornaria das mais importantes para o tal do modernismo brasileiro, um dos últimos vagões da revolução a que assistiu a literatura mundial no século que passou. Este menino, de certo com bala Zequinha na bolsa, tornar-se-ia (perdão pela primeira mesóclise do milênio) o maior contista vivo do Brasil: Dalton Trevisan. E muitos dos que colaboraram na nem tão acanhada assim publicação se tornariam mestres da literatura brasileira nos próximos cinqüenta anos, cada qual em sua área.

Gente como o ilustrador Poty Lazzaroto que, antes de se tornar o gravurista oficial do Paraná, gastando seu talento em prédio públicos, era ilustrador da revista e se tornaria, nos anos seguintes, capista e ilustrador (dos melhores) de livros de Jorge Amado, Guimarães Rosa e, claro, Dalton Trevisan. Gente como o ensaísta e poeta José Paulo Paes (o quê? ninguém mais se lembra dele?), autor de diversos livros infantis e memoráveis textos que, inteligentes, fugiam do indefectível e pavoroso jargão acadêmico que infesta as publicações literárias atuais.

Gente como Wilson Martins, que completará 80 anos e que talvez seja o único crítico literário em atividade hoje no Brasil. Com seu enciclopedismo, que muitos têm por pedante, foge como o diabo da cruz do texto superficial dos resenhistas (mea culpa) e é um bastião da crítica literária de aspiração deveras iluminista no Brasil. Pena que os livros que tenha de analisar sejam os mesmos e muitas vezes medíocres que os resenhistas, estes “office-boys das editoras”, como bem afirmou o aforista Manoel dos Santos no Rascunho passado, tem de tentar analisar em seu espaço mínimo nos jornais diários.

Gente como Carlos Drummond de Andrade também escreveu para a Joaquim. Gente como Otto Maria Carpeaux, Antônio Cândido e Temístocles Linhares.

Ao chegar até aqui o leitor deve estar a perguntar-se do porquê de se evocar uma revista que teve apenas 21 números e que morreu sem ver a Segunda metade do século XX. Acontece que a Joaquim, em cujo slogan se dizia “dedicada a todos os Joaquins do Brasil”, acaba de ser relançada, em edição fac-símile, pela Imprensa Oficial do Estado do Paraná, numa embalagem que prima pela qualidade. A empreitada se deve ao empenho pessoal de Miguel Sanches Neto, declaradamente um apaixonado pela obra de Dalton Trevisan, que ele considera o maior contista brasileiro de todos os tempos, e que também é diretor da Imprensa Oficial. Miguel demorou dez anos para conseguir a autorização de Dalton Trevisan para a reedição de Joaquim sem que o escritor o xingasse de necrófilo.

Ler os 21 exemplares de Joaquim, com sua diagramação primitiva, sua virulência surpreendente (convenhamos: nem tão surpreendente assim), é vislumbrar uma Curitiba que, apesar de ainda andar de bonde, estava na vanguarda da literatura brasileira.

Alguns artigos contidos nestes 21 números tornaram-se antológicos. Dentre eles destacam-se os poemas de Vinícius de Moraes, O Desespero da Piedade, com ilustração do ex-reitor da PUC, Euro Brandão (que também ilustrou o poema Caso do Vestido, de Drummond), o artigo de Wilson Martins sobre Manuel Bandeira, o antológico Emiliano, poeta medíocre, de Dalton Trevisan, atacando o poeta oficial da cidade, Salvação pela Poesia, de Temístocles Linhares, uma carta aberta a Monteiro Lobato, de Raul Lozza e os visionários textos Post-Modernismo, de José Paulo Paes, e Uma, duas, três dificuldades da crítica literária, de Otto Maria Carpeaux.

A revista, no entanto, gira mesmo em torno de Dalton Trevisan, que publicou ali cerca de duas dezenas de contos, que estão longe do estilo mínimo que o consagrou como escritor. Pelo contrário, em Joaquim é possível ler um Dalton Trevisan caudaloso, de frases proustianas. Para os necrófilos de plantão, talvez possa interessar saber que há em Joaquim trechos do renegado livro Sonatas ao Luar. Outro caráter que não pode passar em branco ao se folhear Joaquim é o de certo egocentrismo em torno do editor da revista. Temístocles Linhares, à época já reconhecido como crítico literário, e o então novato Wilson Martins escreveram sobre a obra, por aquela época incipiente, de Dalton Trevisan.

Mais do que um interesse meramente histórico, a reedição da revista Joaquim traz à tona questões fundamentais para se entender a produção literária brasileira. Como a evidente influência existencialista, explicitada com a presença quase constante de Sartre nas páginas da publicação. Outro que batia o ponto em Joaquim era Kafka.

Depois de 21 números lançados sem uma periodicidade muito fixa, a Joaquim deixou de existir. Não porque estivessem desestimulados os editores. Queriam, isto sim, parar enquanto estivessem no auge. Houve quem me sugerisse certo pendor cabalístico pelo último número, 21. O legado de Joaquim, porém, o Paraná e, acho, o Brasil, jamais viu igual. Todas as publicações literários, oficiais ou particulares, que se seguiram, fracassaram irremediavelmente ao tentarem trazer à tona talentos que simplesmente não existiam. Joaquim nasceu numa época em que a literatura simplesmente era necessária para se pensar em como a roda-dentada da História moía os homens e suas fragilíssimas idéias.

O que pasma é que uma publicação de vanguarda estivesse sediada na provinciana Curitiba, na rua Emiliano Perneta (poeta medíocre) e fosse dirigida por um piazote de seus vinte anos. E o que entristece é perceber que, Joaquim à parte, jamais seremos os mesmos.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho