De pai para filho

Contos de João Anzanello Carrascoza exploram de maneira magistral a infância e as incertezas da vida adulta
João Anzanello Carrascoza: antologia comprova a evolução do autor.
01/12/2006

Em O volume do silêncio, Nelson de Oliveira selecionou textos dos cinco livros de contos publicados por João Anzanello Carrascoza. O resultado é um conjunto coeso, apesar de perceber-se a nítida diferença na elaboração da trama e da linguagem entre os textos do primeiro livro, Hotel Solidão, de 1994, e do impecável Dias raros, de 2004. A evolução estilística pela qual passou Carrascoza é notável e mostra, nos contos mais recentes, o ponto alto de maturidade do escritor, criando no leitor a expectativa por seus futuros lançamentos.

Há ao longo da coletânea de dezessete contos um tecer de relações que ressalta o papel do menino que descobre o mundo por meio dos gestos do pai, como em Caçador de vidro, Outras lições e mesmo em Travessia; da menina que se reconhece, como a mirar-se num espelho mesmo que distorcido, na amiga descoberta há pouco, como em Visitas. Alfredo Bosi, um dos mais respeitados críticos do país, salienta alguns outros aspectos da obra na orelha: “Cala também fundo a representação miúda da hora do encontro, tanto mais sofrida quanto mais viscerais são as relações entre os interlocutores”.

O título do livro não poderia ser mais feliz: em todos os relatos, há enredamentos que se desenvolvem ocultos, alheios às palavras. Num poema, Adélia Prado descreve assim o momento sublime do encontro: “Às vezes nossos cotovelos se tocam e o silêncio de quando nos vimos pela primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo”. A linha que ata os personagens aqui raramente encontra-se na superfície, são sempre rios profundos a estabelecer verdades, a relembrar passados, a viabilizar os diálogos que não acontecem.

Um universo de pormenores, como na percepção do menino-personagem: “Antes que a noite caísse e o menino não visse mais as coisas à luz de seus pormenores, e como forma de enganar sua impaciência, ele enrolava o cordel ao redor do pião e soltava o brinquedo no degrau da escada, vendo-o girar, girar, girar, aos seus pés, como a lua ao redor do sol”. Os textos giram numa espiral que nos leva a grutas e desfiladeiros, jornadas exploratórias que só a obra de arte mais sofisticada é capaz de propiciar. E sofisticação aqui é sinônimo de simplicidade, a sofisticação mais difícil de se alcançar.

Em Duas tardes e Janelas, o que não é dito entre os irmãos cerca o texto como um casulo, um exoesqueleto a dar firmeza ao convívio, porém que não permite a solidez mais duradoura: como nas edificações em reforma, em que ferragens e arames sustentam provisoriamente a construção desprotegida, como um frágil animal em muda de pele. Nos silêncios que norteiam os textos de Carrascoza, estas proteções, quando retiradas, escancaram ainda mais a delicada estrutura prestes a implodir: um sopro mais intenso de brisa e desmoronam-se os castelos de areia.

Há textos que são quase ensaios sobre condições canhestras da humanidade e das relações nos dias atuais, como Casais. Nesse conto, toda a banalização do existir contemporâneo aparece de forma irônica e por vezes cruel: “Cruzamos largos corredores. De repente, nos abraçamos, desamparados. Vez por outra nos beijamos. Quase não sabemos mais beijar. Desaprendemos muitas lições. Desajeitados, constrangidos, preferimos o escuro. Fazemos amor já sem alegria. Não estamos preparados para a alegria. Não temos tempo para os irmãos. Não temos tempo para nada”. O texto segue destruindo todas as possibilidades de um horizonte mais claro, avizinha-se um céu cinzento sem possibilidades de estiagem. Na conclusão, percebe-se a irreversibilidade do processo:

A felicidade dura pouco, muito pouco. De qualquer forma, cantamos. Chegamos até a ponto de bailar. Sim, bailamos pela sala, lentamente. Já não temos a mesma agilidade para a dança. Mas dançamos. Em breve, muito breve, teremos um filho. E ensinaremos a ele tudo o que sabemos.

As relações verdadeiras, as que deixam saudades, são as que enumeram pequenos nadas, experimentados nas situações aparentemente mais banais: um nada que é tudo: “E se ele assim vê o pai, batizando-se a si mesmo, o pai abre os olhos e o vê, rindo, a gengiva à mostra onde lhe faltam os dentes, e como se o vento saltasse dentro dele, pai, o menino que sempre houve, eis que atira inesperadamente água no filho, que recua com um grito, surpreso. E riem ambos daquele nada que experimentam”. A citação é do conto O menino e o pião, e traz um aspecto muito marcante na obra do autor: é na meninice, na experiência da descoberta da infância que se arquitetam os valores, às vezes deficientemente formados, que serão levados caminho afora, vida adentro. A beleza destes momentos — descrita com uma sutileza e ao mesmo tempo uma contundência sem par por Carrascoza — é uma das maiores proezas de seu trabalho ficcional. O texto acima referido termina da seguinte maneira, apenas reforçando este aspecto de sua obra:

E novamente o pião em movimento. Mantém-se ali, agachado, numa felicidade que é quase insuportável de se provar em um longo trago, tem é de fazê-lo em goles mínimos. Nem nota que o pai pára no corredor às escuras e de lá o contempla, girando outro pião dentro dele. O menino não cogita que um dia esse cordel se partirá. E, sem ele, o pião jamais será o que foi, como a roseira não é mais a semente que a gerou, nem o sol, a poeira que se aglutinou para formá-lo, círculo de luz, esplendor.

Essa transmutação de pai para filho, carregando heranças tristes e ensinamentos ancestrais, é o que de mais extraordinário se tira dos textos deste livro. Um silêncio que às vezes tem seu volume aumentado ao limite dos tímpanos internos, que nos assombra, aterroriza, ou simplesmente nos toma as mãos, nos afaga os cabelos para nos acalmar, até que o estrondo dos trovões e a luminosidade repentina dos relâmpagos se afastem, como as nuvens negras que ocultam o sol: horizonte azulado a nos redimir e espelhar.

O volume do silêncio
João Anzanello Carrascoza
CosacNaify
216 págs.
João Anzanello Carrascoza
Nasceu em Cravinhos (SP), em 1962. Redator de propaganda e professor universitário, publicou os livros de contos Hotel solidão, O vaso azul, Duas tardes, Meu amigo João e Dias raros. Carrascoza também é autor de novelas e romances infanto-juvenis.
Moacyr Godoy Moreira

É escritor. Autor de Lâmina do tempo e República das bicicletas.

Rascunho