De olhos bem abertos

Altamir Tojal estréia na ficção com “Faz que não vê”, romance ambientado na Era Collor e suas falcatruas; tudo soa muito atual
Altamir Tojal, autor de “Faz que não vê”
01/06/2007

Faz que não vê é um livro guiado por perguntas. A primeira epígrafe escolhida indaga: “quantas vezes pode um homem virar a cabeça/ fingindo que não vê as coisas?”, retirada da famosa canção de Bob Dylan (Blowin’ in the Wind). Ecoando essa questão, segue-se um trecho de Bruno Latour que diz: “Em 2010, um jovem pergunta a seus pais: ‘E vocês, o que faziam entre 1975 e 2000?’ E os pais, constrangidos, respondem: ‘Nós não sabíamos.’ ‘Isso quer dizer que vocês não quiseram saber de nada?’, rebate cruelmente o jovem. ‘Sim, nós desviamos o rosto para não ver.’ Mas do que exatamente eles desviaram o olhar pudicamente?” (Comment être anticapitaliste — conforme traduzido no livro).

O primeiro romance de Altamir Tojal é uma ficção que, sem tentar trazer as respostas ideológicas de um ensaio político, constrói um suspense em torno do desaparecimento de um bem-sucedido empresário, Delano. Aos poucos, vamos tomando conhecimento do protagonista e de seus amigos, bem como das circunstâncias e razões de sua ausência. A narrativa se interrompe, se estilhaça em fragmentos e se apresenta como vidros coloridos que serão recolhidos por Cecília, pelos leitores e pelos antagonistas de Delano para serem organizados num mosaico que possa dar sentido ao seu sumiço. Mas, ao invés de delinear-se apenas a história de Delano, de sua mulher Elisa, de sua amante Cecília, de seus amigos Tiago, Marcão e Ágata, e de seus antagonistas Vicente e Cristóvão, o que vai surgindo da composição dos fragmentos é um desenho sujo de sangue e manchado pela desonestidade — uma panorâmica desencantada do cenário político econômico do Brasil da Era Collor.

A ambiciosa estrutura do romance se divide em quatro tempos diferentes: um passado remoto, de luta política e armada contra a ditadura militar que se instaurava; um passado mais próximo, que explica as razões para a fuga e a clandestinidade de Delano; e dois presentes que se desenrolam paralelamente — o do idílico paraíso (já corrompido e prestes a ser perdido) de seu abrigo em Ponta da Esmeralda, e o das investigações da idealizada Cecília, a Ci, a mãe do mato, amante que perde e resgata seu amado. Em constantes vaivéns, a história vai desconstruindo os heróis sobreviventes de uma utopia do passado, que se adaptaram à vida mesquinha da política e dos interesses capitalistas. Revela como os interesses do capital vão, insensivelmente, contaminando sonhos e ações. Por mais inocentes que sejam as intenções em seu nascedouro, o intrincado jogo de poder e de influência acaba descambando para a corrupção, o benefício pessoal e o crime.

Numa interpretação moderna, todos são necessariamente culpados, pois a sociedade se sustenta em premissas que só beneficiam os interesses do capital, e não os valores humanos. Por distorções ideológicas, mesmo as intenções mais humanitárias deixam de provocar o bem social para acabar favorecendo as grandes corporações. Todos se tornam peões de um jogo de xadrez cujos contendores se encontram fora dos desenhos do tabuleiro, e jogam sentados em paraísos fiscais e em palácios políticos.

Aproveitando-se de alguns elementos de sua experiência pessoal como ponto de partida para a fabulação, Altamir Tojal construiu o que ele define como um romance de formação. Sua intenção era refletir sobre o problema ético com que se depararam os sobreviventes de uma geração alimentada por utopias frente a uma nova ideologia, de sucesso a qualquer preço:

Uma das motivações do romance era refletir sobre a tensão ética e descrever os bastidores do comportamento de uma parte da geração, na qual me incluo, que sonhou e desejou muito, se apaixonou pelo sonho e não mediu sacrifícios pelo desejo, e parece estar vivendo a frustração de entregar muito pouco: algumas mudanças talvez para melhor e outras muitas para pior.

Sob esta atmosfera de desencanto, o romance, escrito entre 2001 e 2005, revela como “as tentações e os vícios do mundo corporativo fagocitam os ideais de resistência e justiça, como se naturalmente o processo histórico se encarregasse de suprimi-los.”, com escreveu Henrique Rodrigues, em 21/04/07, na resenha Declínio da utopia pessoal, no caderno Idéias, do Jornal do Brasil. Embora esteja ambientado na Era Collor, os leitores de Tojal se admiram e comentam que a crise ética representada no romance parece longe de desfazer-se, e que os sucessivos episódios dos bastidores políticos do governo atual, tornam o romance mais contemporâneo do que nunca. Tojal esclarece:

A idéia e o início do livro antecederam, portanto, a eleição de Lula em 2002. A trama e o drama dos personagens também nasceram antes disso. Nunca duvidei da lição cotidiana de que a realidade é mais forte que a ficção. E fui comprovando isso dia a dia, na medida em que ia escrevendo e acompanhava cada capítulo dos acontecimentos que produziram a presente crise política no país, tendo como protagonistas alguns dos mais destacados líderes e ídolos dos que resistiram à ditadura e acreditaram na revolução.

Com a banalização das sucessivas crises, numa sociedade em que a ética se apresenta cada vez mais flexível, os leitores de Faz que não vê acompanham uma trama ficcional, mas tão verossímil, que por vezes podem pensar que estão lendo um texto jornalístico de denúncia. Não há, no texto, heróis com quem se identificar. Nem mesmo os personagens do padre Tiago e de Maria Laura, a moça animada, que tentam salvar o paraíso de Ponta da Esmeralda, conseguem se manter invulneráveis no meio das sujeiras que os cercam. Pequenas concessões, interesses justificáveis, um ou outro possível prazer, a lealdade aos amigos, essas são as brechas que vão minando as figuras dos heróis, e transformando-os nos seres humanos e falíveis de uma sociedade em decomposição.

Toda a vez que o foco impiedoso da escrita de Tojal se concentra sobre um dos personagens, é para desmascará-lo. Numa inteligente descrição, o protagonista é revelado como ausências: “Delano é muitos nãos, ausências e carências”. Apenas Cecília escapa dessa desconstrução, e se apresenta insistentemente idealizada. Em sua primeira aparição, justifica a própria existência de Delano: “Não fosse mais nada, a vida valeria pelo tempo com ela”. Depois, é ela quem resgata uma família da dissolução, e ensina a Delano os caminhos de subida do morro do Borel. O ex-guerrilheiro, que desejaria apaziguar sua má consciência mandando apenas dinheiro para os pobres, começa agora a conhecer o “povo”, ver que não se trata de um ideal “Povo” pelo qual se luta, e pelo qual se é abandonado. O povo aqui tem cara, olhos, bunda. E é tão imperfeito como qualquer um. Mas Cecília continua sua trajetória até que “vira Cecília, Ciça. Ci. Amazona. Moça icamiaba. Guerreira da tribo das mulheres sem homem. Estrela Beta do Centauro”.

Ironicamente, é essa a personagem que vai revelar o paradeiro de Delano, que denunciará seu esconderijo e colocar em movimento as engrenagens que levarão o romance a seu desfecho. Pode-se dizer que, de Ci, ela se transforma em Eva, e provoca a expulsão de Adão/Delano de seu paraíso. Mas, ao invés da sensação de perda, esse moderno Adão tem uma reação mais aventureira e desafiante e “carimba o passaporte para a vida. Aliviado. A-ni-ma-do. Agarra ansioso a própria alma e faz meia volta.[…] Adão corre para o mundo. Corre!”

Fiel a sua estrutura, o livro termina com uma pergunta, deixando a seus leitores a tarefa de seguir refletindo: “Quem tem saudade do paraíso?” Percebe-se que a crença do autor é a de que não há fuga possível, pois não se pode fugir de si mesmo nem do tempo em que vivemos. Nossa única realidade é o aqui e agora, por mais imperfeito que seja. Devemos, então, aprender nossas lições e seguir em frente, sem lamentações.

O espírito de Delano não se deixa abater. Ele ainda acredita que pode mudar as coisas, e que é preciso tentar, pelo menos mais uma vez. Seus novos caminhos não nos serão revelados, pois ainda estão sendo percorridos. Teremos de descobrir o trajeto por meio dos jornais, das revelações de nosso mundo, que desmascarou tantos Delanos mas que ainda espera resgatá-los.

Antonio Torres, na orelha do livro, destaca que o enredo do romance revelou o sistema inescrupuloso que se agiganta como poder paralelo e chega a corromper a estrutura do Estado, deixando-o aprisionado em sua teia. Se isso se torna patente, também fica evidente a única espécie de reação possível: os heróis de hoje estão nas redações de jornal e nas escrivaninhas dos autores que refletem sobre os temas que nos afligem. Os trabalhos investigativos dos repórteres e as denúncias pelas páginas dos jornais e dos livros são as únicas tentativas de tirar as vendas de nossos olhos que, mais e mais, se acostumam a não ver. Ao afirmar que “não há como fugir de nós mesmos”, Tojal sacode seus leitores e os incita a seguir de olhos bem abertos, examinando as figuras públicas e suas motivações, freando o processo de alienação que se alimenta do “faz que não vê.”

Faz que não vê
Altamir Tojal
Garamond
220 págs.
Altamir Tojal
Jornalista, e começou a se dedicar à literatura aos 50 anos. Estimulado pela oficina de literatura ministrada por Antônio Torres na UERJ, escreveu o livro de contos Oásis azul, ainda inédito. Tendo cursado a Escola Técnica (atual Cefet) durante os conturbados anos 1960, envolveu-se em política estudantil, chegando a ser presidente da União Nacional dos Estudantes Técnicos, mas acabou por se afastar da escola sem se formar, devido a esses envolvimentos. Quando voltou aos estudos, optou por cursar jornalismo, na UFF. Durante o processo de escrita de seu primeiro romance, Faz que não vê, Tojal sentiu a necessidade de retomar os estudos. Optou pelo curso de pós-graduação de Filosofia Contemporânea, na PUCRJ.
Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

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