De mãos dadas

Em um Brasil culturalmente infeliz, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna despontam como esperança de salvação para a poesia nacional
Affonso e Marina: “Dois pintores que saem para pintar ao ar livre e cada um retrata a cena ao seu modo”.
01/07/2005

Vestígios e Fino sangue. Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti. Dois livros de poesia. Marido e mulher. Marina Colasanti costuma dizer que chegou tarde à poesia. Mas foi sempre a poesia que despertou sua paixão em relação à leitura. Observa que, quase sempre, começa-se pela poesia quando jovem e acaba-se na prosa. “Fiz o caminho contrário por achar que a poesia é um gênero exigente, difícil.” Por seu lado, Affonso Romano de Sant´Anna explica que seu novo livro de poemas é polifônico, com grande abertura formal. Observa que sem monotonia temática e verbal, trata de assuntos que são uma constante no seu trabalho e confirmam o que vem perseguindo desde o início de sua vida literária. Vestígios trata de temas brasileiros com alguma ironia, mas traz também poemas escritos tendo por base suas viagens especialmente à África e ao Oriente Médio. O livro é, também, como diz Affonso, uma volta à infância, e contém uma série erótica e amorosa, uma avaliação do ambiente artístico e literário, além de poemas voltados para seu amor à pintura. “O escritor tem uma relação com a palavra como se ela fosse um ser vivo. É uma relação vital.”

Dois livros de poesia. No país dos enganos, livros de poesia são raros. Raros são os poetas verdadeiros. O Brasil é um país sem sorte. A imagem não é poética como pode parecer. Triste, o país vive seus infortúnios em todos os setores de sua vida infeliz. Na área da literatura, o país é vilipendiado por atrocidades difíceis de aceitar. Em relação à poesia, a dor é maior, já que os aventureiros do marketing se apoderaram de praticamente todos os espaços disponíveis numa mídia cultural que não tem compromisso com nada. Apesar desse quadro melancólico e desalentador ainda existem poetas sérios. Ainda existe poesia. Apesar de tudo. Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti servem como exemplo. Os dois livros que estão lançando permitem dizer que nem tudo está perdido.

Marina Colasanti é uma mulher de seu tempo. Parece frase feita, mas não é. Ela é mesmo uma mulher de seu tempo, com os olhos voltados para a vida. Para o fundo da vida. Pode ser para o fundo da poesia. “Gosto de poema/ que fala de ovo frito/ latido de cão/ e cheiro queimado”. Exatamente assim. A palavra por descobrir a palavra. Essa paisagem que Marina pinta em versos tantas vezes comoventes, desses que fazem pensar que a poesia, afinal, existe e vive ainda a percorrer os caminhos do homem. Mulher, ela atravessa o tempo de toda íntima descoberta do que sempre se mostra ao olhar especial.

Nasceu em Asmara, Etiópia. Viveu dez anos na Itália. Vive no Brasil desde 1948, quando sua família chegou ao Rio de Janeiro. A carreira literária foi iniciada em 1968, com o livro Eu sozinha. Depois foi o percurso. Mais de 30 livros publicados em vários gêneros. O país carece de gente assim. Gente que defende a vida pela palavra. Pelo poema. Pela possibilidade do poema: “Quando Nero queria ver/ o mundo melhor/ olhava-o através de/ uma esmeralda./ Quando quero ver melhor/ o mundo/ eu o olho através/ da palavra”.

Este Fino sangue é uma viagem que se faz a cada instante, a cada leitura e releitura de poemas construídos como um grito e também com a delicadeza dos monges. Vejam este poema Jerusalém, Jerusalém: “O açafrão que comprei/ botei na mala/ e na mala botei/ a roupa branca comprada/ no mercado./ Minha roupa chegou/ bordada de perfume/ pano branco/ com cheiro de dourado”. O poema percorre com emoção essa fotografia do instante. O momento que se faz eterno na palavra, na poesia. O instante que se costura na pele. O olhar mulher sobre o que poucos vêem. E tudo realizado com uma poesia que mostra retratos feitos com esmero. Só o zelo feminino pode permitir poemas assim: “Porque é meu amor/ põe a mão em mim/ em qualquer lugar/ sem que a carne crispe./ Porque é meu amor/ em qualquer lugar/ onde ponha a mão/ toda me estremece”.

Já Affonso Romano de Sant’Anna chega a Vestígios depois de percorrer 40 anos, a partir de seu primeiro livro Canto e palavra. Ele diz que sua obra de estréia é profética sobre sua trajetória: “Na verdade, o primeiro livro profetizou o meu caminho de poeta que busca a elaboração a partir da intuição e da dedução”. Affonso explica que “canto” significa emoção, o primeiro jorro, a tentativa de localizar o subsolo de alguma coisa de você mesmo, de um fenômeno. Já “palavra” é a maneira de configurar, organizar, dar plasticidade a este magma que surge e vai crescendo. E assim se fez e se faz a obra desse poeta — dos mais significativos da poesia brasileira — que não faz concessões, que elabora seu poema com a ferramenta do poema, na busca da palavra mais correta envolvida na emoção necessária ao poema, coisa que — parece — está proibida no Brasil por alguns adeptos da estupidez.

Com Affonso Romano de Sant’Anna, não. Sua poesia é aquela poesia que nasce na observação da vida do homem, uma colheita de tantas fotografias das ruas, dos prédios, das plantas, de tudo em que a vida se faz presente. Só um poeta assim poderia escrever um poema como Elefantes, a exemplo de tantos outros que formam este belíssimo livro que, antes de tudo, dignifica e enobrece o ofício de escrever: “Entrementes leio/ que em Daknei/ os elefantes vão ao rio banhar-se/ na Lua Nova/ e depois de assim saudá-la/ voltam à floresta tranqüilos./ Quando doentes/ (também leio)/ com suas trombas/ lançam ramos de árvores/ ao céu/ como se oferecessem sacrifício/ a um deus qualquer./ Pode ser tudo interpretação humana./ Mas na Índia (já foram vistos)/ no crepúsculo/ — os elefantes choram”. Este poema é comovente, porque nele o poeta se coloca como o narrador de uma circunstância que não pertence só a esses elefantes do poema. Não. Vai muito além porque o olhar do poeta revela o que lhe significa a vida, equivale dizer, o que lhe significa o poema.

Na verdade, não há muito a se dizer de Marina Colasanti e de Affonso Romano de Sant’Anna, senão agradecer, não se sabe a quem, por ainda existirem poetas assim neste vale de lágrimas que é o Brasil, sem honra alguma em seus descaminhos aflitos. Viver com Marina Colasanti é — como diz Affonso — algo mágico, estimulante e enriquecedor, com a recíproca absolutamente verdadeira. Andam assim de mãos dadas, como caminhantes a colher a poesia ainda possível, essa poesia que se tira das pedras e das folhas das árvores, dos insetos, do aceno, do gesto mais nítido, para que tudo, afinal, se faça luz.

LEIA ENTREVISTA COM AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

LEIA ENTREVISTA COM MARINA COLASANTI

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho