Quando se pensa em alguma obra literária que tenha conseguido abordar, de modo intenso e elevado, as múltiplas nuances da delicada e contraditória relação entre pais e filhos, o que nos vem logo à mente como importantes referências entre tantas são a obra-prima do russo Turguêniev: Pais e filhos, e o estupendo Carta ao pai de Franz Kafka. O primeiro se atém mais ao conflito geracional e ideológico, privilegiando o embate entre tradição conservadora e nova mentalidade progressista, ao passo que o segundo explora o universo subjetivo e existencial da profunda crise de relacionamento entre o famoso escritor tcheco e seu rígido pai. E talvez não seja exagero dizer que depois da carta que Kafka escreveu em 1919, poucos tenham conseguido tocar, de forma tão aguda, na ferida aberta desse tipo de relacionamento, que sangra continuamente, ainda que escondida sob as vestes da resignação e do conformismo.
É também desse mesmo conjunto de emoções conflitantes, que vai do ódio pungente a mais profunda admiração de filho pelo pai, que se nutre o romance O tempo que eu queria, que marca a estréia no Brasil do italiano Fabio Volo. Mais que tudo, nesse caso, o narrador em primeira pessoa, Lorenzo, assume o tom confessional, de desabafo e revolta, buscando expiar a dor de quem só contou, durante a infância e adolescência, com a presença ausente do genitor. O prólogo que abre o livro é tocante:
Sou filho de um pai nunca nascido. Compreendi isso observando sua vida. Até onde vai minha memória, não recordo ter visto nunca o prazer em seus olhos: poucas satisfações, talvez nenhuma alegria.
Isso sempre me impediu de desfrutar plenamente a minha vida. De fato, como pode um filho viver a sua se o pai não viveu a dele? Há quem consiga, mas ainda assim é cansativo. É uma oficina de sentimentos de culpa que trabalha a todo vapor.
Meu pai tem sessenta e sete anos, é magro e tem cabelos grisalhos. Sempre foi um homem cheio de força, um trabalhador. Agora, porém está fatigado, cansado, envelhecido. Foi decepcionado pela vida. Tão decepcionado que, quando a descreve, muitas vezes se repete. Vê-lo nessa condição desencadeia em mim um forte sentimento de proteção. Isso me enternece, me desagrada, eu queria fazer algo por ele, queria ajudá-lo de algum modo. E me sinto mal, pois me parece que nunca faço o suficiente, que nunca sou o suficiente.
Sem fôlego
Com efeito, as expectativas que se abrem depois desse belo início, em que a ambigüidade dos sentimentos indica estarmos diante de situações paradoxais e insolúveis, são promissoras. Porém, o que se verifica, com o decorrer do fluxo narrativo, é que o narrador parece perder o fôlego inicial. Como se estivesse diante de uma longa maratona e sem lançar mão das estratégias e procedimentos capazes de manter a tensão anunciada previamente, a estrutura do romance vai se diluindo e os subtemas dissipam o argumento principal, enfraquecendo o que se anunciara como conflituoso e complexo. De fato, se aquela mesma voz que abre a história de modo contundente continuasse a manter o tom angustiante dos sentimentos de culpa e vontade de proteção ou mesmo de ódio e amor em relação ao pai, que jamais conseguira mostrar ao filho a verdadeira identidade por trás dos condicionamentos impostos pelo trabalho árduo, provavelmente estaríamos diante de uma problemática existencial das mais interessantes.
Contudo, ao voltar-se para si mesmo, numa tendência que tangencia de leve algo dos romances de formação, Lorenzo passa a entrar no vasto território das amizades e amores que colaboraram para que se transformasse em quem passaria a ser na vida adulta, perdendo um pouco o foco crucial da questão a que se propusera enfrentar.
Humilhado e ofendido
Vivendo o trauma dos rejeitados, com os tristes recalques dos que se sentem “humilhados e ofendidos” à la Dostoievski, já que a pobreza lhe doía visceralmente e a família dava um duro danado no bar que possuíam, mal conseguindo se sustentar diante das dívidas que o pai — sem qualquer tino comercial — contraía, o menino cresce e entra na adolescência, marcado pela indignação de quem se sente refém de todo mundo e tem apenas “uma vida para se envergonhar”. A cena em que descreve uma das festas dos ricos para o qual tinha sido convidado é comovente:
Para mim, era como o baile de Cinderela […] Fui à festa. Todos os rapazes de famílias ricas estavam lá, e eu com eles, no Olimpo. Vestia uma roupa nova, mas o problema não era esse, mas sim os sapatos. Gastos, sobretudo do lado externo, por causa da minha verdadeira identidade. Mas não só os sapatos me entregavam. Havia outra coisa, o mesmo problema que Cinderela também deve ter tido. De fato, sempre achei que Cinderela pode até ter ido ao baile com um vestido novo, os cabelos com a ondulação perfeita, o sapatinho de cristal, mas as mãos… suas mãos eram seguramente diferentes das de outras damas presentes no salão. Cinderela, como eu, devia ter as de quem torce o pano de chão quando lava o piso, de quem limpa o banheiro e usa detergentes. Minhas mãos eram diferentes das dos meus amigos, eram cheias de cortes, arranhões, calos… Via-se logo que eu era diferente.
Mas o herói não sucumbirá à força cíclica e atávica desse destino marcado e ferido brutalmente pela pobreza, perfazendo a história dos que não têm saída, numa perspectiva filiada ao Determinismo de Tayne ou ao Naturalismo de Zola, cumprindo a mesma trajetória de anulação de seus ancestrais. Diversamente dos personagens esmagados e tragados pelo meio como os de Giovanni Verga em Os malavoglia ou em Cavalaria rusticana ou ainda como os de Fontamara, de Ignazio Silone, em que as relações arbitrárias de poder submetem os mais fracos, que não conseguem escapar daquele círculo infernal, Lorenzo dará a volta. Libertando-se das amarras do ambiente familiar que o submetia, acabará sendo introduzido no universo da leitura e da música, tornando-se, na vida adulta, um bem-sucedido publicitário.
Ode à leitura
Cumpre notar o quanto conhecer Roberto — o vizinho mais velho que o introduz no universo da arte, da leitura e da música — representa fator decisivo para a mudança da trajetória de vida do protagonista. Assim, a verdadeira ode à leitura, que ele leva a cabo em várias páginas do romance, passa a idéia de que por meio desse apelo estético é possível mudar a realidade e transformar as pessoas:
Em pouco tempo, a leitura se tornou para mim uma droga. […] Depois de Kerouac e de Chatwin, passei a Huxley. Ainda recordo minhas primeiras leituras: “Pergunte ao pó”, de John Fante; todos os livros de Charles Bukowski; “Moby Dick”, de Herman Melville; “Ivanhoé”, de Walter Scott; “A lua e as fogueiras”, de Cesare Pavese; “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati; “O sol também se levanta”, de Ernest Hemingway; “A educação sentimental”, de Gustave Flaubert; “O processo”, de Franz Kafka; “As afinidades eletivas” e “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe; “A ilha do tesouro”, de Stevenson; “A sangue frio”, de Truman Capote; “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde; “Pontos de vista de um palhaço”, de Heinrich Böll; “As cidades invisíveis”, de Italo Calvino; “Cartas luteranas”, de Pasolini. Os livros de Dostoievski me empolgaram. Tinham um perfume de realidade que me transtornava.
Dificuldade de amar
Nesse processo lento, doloroso e epifânico de metamorfose de Lorenzo, primeiramente da sensação de abandono na infância à da raiva reprimida na adolescência, para atingir a maturidade na vida adulta, o que se revela como mais instigante é a mudança de percepção de como ele passa a interpretar sua própria existência à luz dos sentimentos de rejeição e conflito, decorrentes da instabilidade de afetos em relação ao pai. Capaz de tomar a distância necessária do ambiente originário — com todo mal-estar que este lhe causara — reconhece sua dificuldade de amar como grave defeito adquirido por conta da aridez da alma, que o impedia de se entregar completamente a qualquer tipo de situação amorosa. Realmente envolvido com uma mulher com quem mantém uma verdadeira história, perde-a pela incapacidade de enfrentar à altura o impasse que se lhe impõe, diante da vontade que ela manifestara de ter um filho. É nessa dinâmica em que ele mal conhece o indivíduo por trás da máscara fugidia do pai, considerando-se um filho “cujo pai não nasceu” e conseqüentemente frágil e incerto quanto à sua própria vontade de querer gerar uma vida, que a estrutura do romance se adensa, retomando o leitmotiv inicial. Em outras palavras, a sensação de impotência paralisante que assola o narrador protagonista, quando se lhe apresenta a chance de se tornar pai, retoma o nó crucial: como ser pai, se ainda pesa a condição de filho que não teve a chance de descobrir quem é, em essência, o ser que se esconde sob as vestes obscuras do homem que o gerou? Aqui, a perspectiva de entranhamento psicológico se impõe e eleva o romance à temática dos conflitos demasiado humanos, que estão na base de nosso estar no mundo. É o que se depreende do seguinte trecho:
Não me sentia pronto para me tornar pai.
Minha vida foi difícil, digamos que sempre trabalhei muito e pensei pouco em mim mesmo, em quais eram os meus desejos. Com um filho, eu tinha medo de precisar recomeçar tudo desde o início. Fazer um filho me dava a sensação de acrescentar mais trabalho e mais responsabilidades às que eu já enfrentava. E, também, como podia desejar um filho se ainda estava desejando um pai?
Se essa busca desenfreada em direção ao próprio pai se mantivesse, se os sentimentos antitéticos de amor e ódio, raiva, necessidade de proteção e culpa fossem mais bem explorados, talvez o romance não perdesse a força promissora que nas páginas iniciais deixara antever. Se assim conduzisse a narrativa, Lorenzo não reclamaria tanto — como indica o próprio título da obra — pelo tempo que gostaria de ter, a fim de resgatar os afetos que o martirizaram ao longo de sua via crucis. Talvez pudesse, diversamente, correr o risco de elevar essas suas reflexões à instância maior da transfiguração poética, capaz de conceber aquele mesmo tempo irrecuperável, por exemplo, como o concebeu Drummond: um “Deus cronos que, com seu alfanje dourado, decepa sonhos e sonos”…