De excesso e de falta

Conjunto de contos de Glauco Mattoso se enfraquece devido à repetição e previsibilidade
Glauco Mattoso, autor de “Tripé do tripúdio”
01/02/2012

Glauco Mattoso é desses raros poetas que, ao escreverem, imprimem em seus poemas inconfundível assinatura. Mesmo para o leitor não especializado, não seria difícil, após mínimo contato com sua obra, reconhecer em Glauco a poesia tão técnica quanto desbocada, na qual ele se escancara sem clamar por piedade nem conferir superestima a si próprio, a provocar no receptor indecisão entre o riso e o pavor, e com a qual demonstra ser possível alcançar o alto patamar da arte mergulhando no mais baixo calão dos homens.

Falo, obviamente, do Glauco Mattoso fascinado pela sujeira fisiológica e moral, verdadeira máquina de escrever sonetos isentos de sublimação, nos quais a tematização do sexo em estado bruto é gosto pessoal e também é amostragem da vocação humana à barbaridade. Mas ele não é poeta de uma nota só, e em seu universo poético habitam, sempre com igual densidade, o cronista do movimento urbano de São Paulo (sua cidade natal), o crítico do grande teatro político internacional e o leitor arguto do curso histórico da literatura brasileira. Destaque-se ainda sua polivalência ao estruturar o discurso poético, pois o autor (cuja erudição revelou em Tratado de versificação) não é apenas sonetista, como sua hiperbólica produção pode fazer supor (pois ele detém a marca de maior autor de sonetos da história da literatura mundial).

A variação de Glauco faz-se também perceptível por sua produção em prosa, seja ensaística ou ficcional. Especialmente em relação a esta última, o autor mostrou-se, a um só tempo, versátil e uníssono. Tanto os romances Manual do podólatra amador (1986) e A planta da donzela (2005) quanto o volume de narrativas curtas Contos hediondos (2009) revelam uma escrita à vontade ao transitar entre gêneros e umbilicalmente ligada ao projeto desenvolvido há tempo considerável, pois estas obras estampam o fetiche, a opressão moral e sexual e o teor autobiográfico tão firmemente presentes nos textos em verso do autor de Maus modos do verbo.

Engrenagem constante
Tripé do tripúdio e outros contos hediondos, que ora se publica, não destoa da engrenagem mattosiana. Mas há neste livro um considerável porém: enquanto consolida o temário, ele sinaliza enfraquecimento do literário. A razão da baixa seja talvez percebida após a leitura de apenas poucos dos vinte e cinco contos arrolados no volume: no conjunto, a estrutura dos textos é repetitiva, ao passo em que os enredos narrados, a despeito do impacto que possam causar num ou noutro momento, são absolutamente previsíveis.

Todos os textos de Tripé do tripúdio são iniciados pelo relato de circunstâncias propiciadoras de algum poema por parte do autor de As mil e uma línguas: “O soneto 653 me veio quando, através dum amigo americano, fui apresentado a outro usuário de computador falante que, como eu, está totalmente cego e se sente abusado pelos caras que enxergam”, diz em O aprendizado. As referências objetivas da personalidade do próprio Glauco Mattoso dão ao texto um misto de ficção e confissão, inserindo o livro num polo muito prezado pela literatura contemporânea — o da tensão entre acontecido e inventado. Ao lado de declarações como esta —“Não me adaptei, mas hoje convivo com a cegueira mais pacificamente que nos anos 90” —, plenamente identificáveis na biografia do autor, aparecem outras, algo metadiscursivas, a afastar das narrativas a hipótese de registro de fatos verídicos: “Digamos que a história pudesse ser desfiada numa única ligação e façamos de conta que o papo tenha rolado assim”.

Embora apresente esses itens de importância teórica, a repetição do assunto e o encaminhamento da narrativa para o mesmo desenvolvimento e final de quase sempre — a prática da felação como somatório de prazer e subjugação — torna o livro muito repetitivo, e suas histórias, pouco verossímeis para o campo do real e insuficientes para o campo do imaginário. A esse respeito, surpreende certa espécie de auto-análise literária num dos contos, intitulado Papel anti-higiênico:

Um soneto como aquele “Higiênico” (143) me veio na mesma noite em que, conversando com Carlos Carneiro Lobo, a monotonia dos contos eróticos foi a pauta central. Comentávamos que, no caso da literatura gay, sempre houve pouca vanguarda e muita retaguarda, e o magistral ficcionista de Histórias naturais e de Geografais humanas, que costumeiramente me visitava, expunha então sua própria teoria a respeito: a arquetípica estrutura narrativa na base do começo-meio-e-fim, contestável ou não, fica reduzida, no homoerotismo, à mera sequência ereção-penetração-ejaculação, que, já pouco criativa por si mesma, resulta ainda mais burocrática por estar presa a falsos clichês como o mito do pau grande e o vício do coito anal.

A passagem é perfeita para ler o próprio Tripé do tripúdio e outros contos hediondos. Todos os textos que o compõem são pautados pelas questões mais obsessivamente presentes no imaginário de Glauco Mattoso: a homossexualidade, a paixão por pés descuidados, a prática de sexo oral e de escatofilia e o ato sexual efetivado como gesto de humilhação. A abordagem dos temas é inegavelmente importante: primeiro por enrijecer a dicção do autor; segundo, por externar a denúncia de alguns modos de opressão e o silêncio que se faz em torno deles.

Excesso e falta
Mas a recorrência temática não é alicerçada sobre uma forma literária bem elaborada. Em todos os textos, Glauco — autor, narrador e personagem — ouve ou vivencia situações em que algum homem foi conduzido, voluntariamente ou não, a efetivar sexo oral com outro homem (somente em dois contos, História oral e Jugo conjugal, a felação é realizada de modo heterossexual, e em outro, Dinheiro suado, Glauco relata apenas ter lambido os pés de um participante de um concurso de chulé do qual foi jurado). Todos os personagens que desempenham as ações principais (entenda-se os “feladores”) são submetidos a algum tipo de rebaixamento moral, e não raro figuram como protagonistas de uma inversão dos papéis sociais que simbolizam a superioridade e subordinação: é o padrasto fissurado pela urina do enteado; é o condômino posto a amansar a raiva do porteiro do condomínio; é o professor escravizado pelos alunos; é o intelectual branco posto de joelhos e ao dispor do negro de universo popular. Mas também se contemplam casos mais estigmatizados: “A molecada pegou o negrinho pra Cristo não só por causa da cor (mais comum nos filhos de faxineiras que de inquilinas), mas principalmente por ser forasteiro e órfão de pai”, afirma Dominação no condomínio.

Além dos pênis, as bocas dos dominados são sempre dirigidas aos pés e, em menor proporção, aos ânus, não apenas para tocá-los com carícias labiais, e sim para deles remover as mais orgânicas e humanas sujeiras. Em decorrência disso, os contos de Tripé do tripúdio, com raríssimas exceções (estas, quando ocorrem, ligam-se a pequenos detalhes), baseiam-se no seguinte esquema de construção: o narrador inicia reportando a situação que lhe gerou a escrita de um soneto (tal situação é por ele vivida ou ouvida); o ato sexual a ocorrer é precedido por um ato de podolatria; o centro do enredo é a cena em que um homem, por fantasia libido-moral, rebaixa-se ou rebaixa outro homem à felação; o ápice da narrativa consuma-se quando quem assume postura passiva ingere a ejaculação do triunfante: “Depois que sujou bastante a língua na poeira do pé da turma, teve que levar rola na boca. Glauco, acho que em todas as missas o Beto não comungou tanto quanto a porra que engoliu naquela tarde!”.

Além da repetição de taras, situações e simbologias, as narrativas de Glauco Mattoso soam artificiais na medida em que seus personagens caminham certeiros para as ações e conseqüências já previamente programadas. Em nenhum conto há uma inversão inesperada do destino de algum personagem: quem gosta de abocanhar abocanhará; quem não gosta, também. Nisso, não há sequer uma passagem de introspecção, não aparece um personagem arrependido por expor sua vítima à vexação, tampouco há, por parte de qualquer tipo “machão”, um só vacilo diante da hipótese de se envolver numa, ainda que fugaz, cena homoerótica. A esse respeito, os textos Tripé do tripúdio e O zelador felador são exemplos cabais: no primeiro, um típico sambista, negro, forte e namorado de uma mulata, dirige-se a Glauco desconfiado de que este flertava com sua companheira. O interpelado desfaz a desconfiança confessando, de forma direta, ser homossexual, atraindo logo em seguida o sambista — tudo isso em menos de dez falas. Resultado: tudo acabou no samba de Glauco: língua no pé, língua no pau, esperma na língua.

Em O zelador felador muda-se a ambientação, mas não o imediatismo das propensões homossexuais dos personagens. Odorico, um zelador de prédio pobre (o adjetivo serve para ambos), presta-se a todo tipo de “serviço” para se manter no cargo. O síndico Osvaldo, ao abandonar seu posto, passa a Jurandir, seu substituto, todas as informações acerca do zelador. No momento em que Jurandir e Odorico se apresentam, após escasso diálogo, dá-se o seguinte: “E fiz um gesto de quem vai desapertar o cinto depois do almoço. A senha funcionou como um botão de controle remoto. Odorico se abaixou como se fosse amarrar o sapato e olhou direto na direção do meu pau”. A cada dia veiculam-se notícias que, de tão bárbaras, espantam pelo ineditismo. Da mesma maneira, todos passam por alguns acontecimentos que se dão como por passe de mágica. Mas nos contos de Glauco tudo soa automático e retilíneo, pois não acontecem entraves ou reviravoltas. Neste universo ficcional, as personagens figuram como máquinas postas a efetivar as obsessões sexuais do autor. A linguagem narrativa também se apresenta de forma objetiva, o que faz, em alguns lances, a literatura reduzir-se a mera conversinha de “colegas” (veja-se o diálogo, citado após esta resenha, entre os confidentes Glauco e Nelo a respeito de um porteiro chamado Odair).

O fetiche em excesso terminou por deixar Tripé do tripúdio e outros contos hediondos falto da envergadura literária que tornaria suas histórias mais verossímeis e contundentes. Isso aproximaria os contos do propósito do autor de desnudar tabus e bizarrices, apontando-as como normais entre pessoas de contextos diferentes. Sem a invenção literária, o real perde muito de sua possível realidade.

Tripé do tripúdio
Glauco Mattoso
Tordesilhas
213 págs.
Glauco Mattoso
Glauco Mattoso (pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva) nasceu em junho de 1951, em São Paulo. Como poeta, despontou no cenário brasileiro ligado à poesia marginal, sendo considerado seu mais importante representante. É também tradutor, ensaísta e ficcionista.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho