Não sou escritor. Não tenho uma obra.
Escrevo porque sou pago para isso.
(Millôr Fernandes)
A lógica parece estar a favor do editor/mercador: se há parques temáticos, edifícios temáticos, mostras temáticas de cinema e artes plásticas, por que não haver uma coleção de livros temáticos? Se por um lado, no entanto, é a razão mercantilista que grita seus irrefutáveis sofismas, por outro há quem preze pela boa literatura, fora das garras da indústria editorial, e grita por socorro quando percebe que também a minguada literatura brasileira cede aos encantos das coleções caça-níqueis.
Primeiro foi a Editora Objetiva, que lançou a coleção Plenos Pecados, uma espécie de reedição ampliada de um sucesso editorial da década de 70. Fascinada, certamente, com os lucros da concorrente, agora é a vez da Companhia das Letras lançar a coleção Literatura ou Morte. A julgar pelos dois primeiros volumes da série, uma coisa é certa: será mais um sucesso de vendas e um fracasso do ponto de vista estritamente estético.
Vejamos o livro do filósofo e neo-escritor Leandro Konder, A Morte de Rimbaud (xxx págs.). Konder abre a série falando do célebre poeta francês, um dos ícones do Simbolismo, ao lado de Verlaine e Baudelaire. O livro é galgado numa estrutura que nada deve à mestra das histórias detetivescas, Agatha Christie. Eu disse que nada fica a dever? Minto: o desenlace da história é tão primária que parece ter sido escrita às pressas, entre o almoço e o jantar de um domingo qualquer. Este não é, entretanto, o único defeito do livro; é somente o mais assombroso.
Konder, não muito afeito à abstração literária e, pior, mostrando que em matéria de Rimbaud entende mesmo é de Severino, narra a investigação de um crime ocorrido numa cidadezinha turística do interior, mais precisamente num complexo hoteleiro no qual vivem cinco pretensos literatos financiados por um mecenas milionário e excêntrico, apaixonado pela literatura francesa. É assim que Severino Cavalcanti, alcunhado Rambo, torna-se Rimbaud; João Carlos Suslov, de apelido Russo, vira Rousseau; Cláudio Nicodemo da Silva recebe o pseudônimo de Claudel; Mauro Teodoro é Mauraux; e José Tibúrcio Aragão vira Aragon. Estes literatos de produção e inspiração escassas tornam-se, assim, o suspeitos do crime, a ser investigado por Sdruws, um Marlowe de quinta categoria.
O livro todo é narrado em primeira pessoa pelos diversos personagens, numa espécie de diálogo entre mudos. Fica evidente, neste artifício, a incapacidade do autor em dar coesão à sua historieta. Indeciso entre o teatro e a narrativa tradicional, Konder revela-se também pouco à vontade com esta inverossímil técnica narrativa. Sua “cultura de enciclopédia”, já evidente na escolha absurda — era para ser humor?! — dos nomes dos personagens, torna-se algo pernóstica através das citações que pontuam o livro.
Vale lembrar que foi este livro canhestro de Leandro Konder que deu origem à coleção toda (o que, espero, não seja algum tipo de sinal). Foi a partir dos originais de A Morte de Rimbaud que o editor Luis Schwarcz teve a geniosa idéia da coleção, que contará com mais 15 romances.
O outro livro da série já nas livrarias é Stevenson sob as Palmeiras (xxx págs.), do argentino naturalizado canadense Alberto Manguel, que, diferentemente de seu colega brasileiro, optou por escrever uma história menos detetivesca e, por isso mesmo, mais centrada nas particularidades psicológicas do personagem famoso, o escritor escocês Robert Louis Stevenson, autor do famoso A Ilha do Tesouro e outros romances de piratas. Manguel, aliás, faz questão de deixar claro que seu escolhido tem em admiradores como Jorge Luís Borges, Ítalo Calvino e Graham Green o atestado de qualidade que sua obra necessita.
Stevenson sob as Palmeiras narra os últimos dias do escritor em seu refúgio na ilha da Guiné, no Oceano Pacífico, até então uma possessão britânica. Stevenson, tuberculoso, encontra num passeio um missionário também escocês, que diz estar na ilha para fazer um censo. A partir da chegada do missionário, crimes começam a acontecer no pequeno vilarejo da ilha. Primeiro morre uma nativa, depois um pub com dezenas de pessoas dentro é incendiado. Em todos os casos há indícios claros, para o leitor, de que se trata de crimes cometidos pelo tal missionário.
O livro de Manguel atrai mais pelo contraponto ao mistério barato (baratíssimo, uma pechincha!) do livro de Konder do que por suas qualidades individuais. Por ser psicologicamente mais bem engendrado, transcende a mera elucidação de um assassinato previamente acontecido. Manguel faz bom uso da metaliteratura para traçar um perfil do ambiente onde se insere seu personagem. O mistério do livro, é bom sublinhar, não está em quem cometeu os crimes. Por outra, esta é questão secundária; o leitor há de se interessar mais no porquê dos crimes.
Em comum os dois livros têm os seus pós-desfechos. Ambos recorrem ao já por demais manjado clichê de estarem narrando, de fato, um livro sendo escrito.
O que os dois livros não nos fornecem é dados para sabermos a que público especificamente se destina tal coleção. Por se tratar de livros cujos personagens são nomes canônicos da literatura mundial, era de se esperar que se destinassem a um leitor já acostumados aos nomes-títulos. O que se percebe, porém, pelos dois primeiros livros da série, são enredos completamente desconexos, sem uma linha mestra.
Treze outros livros estão programados para a coleção Literatura ou Morte. O próximo, a ser lançado na Bienal do Livro, de 28 de abril a xxx maio, em São Paulo, é de autoria do mestre do romance policial brasileiro, Rubem Fonseca. O autor de Bufo & Spallanzani discorrerá sobre Moliére, o dramaturgo francês, autor de peças como O Burguês Fidalgo e O Avarento. Em maio é a vez de Bernardo Carvalho escrever sobre o Marquês de Sade e Moacyr Scliar sobre Franz Kafka.
Completam a coleção o onipresente Luís Fernando Veríssimo, que escreverá sobre Jorge Luis Borges, Milton Hatoum sobre Euclides da Cunha, a supervalorizada Patrícia Melo sobre Edgar Allan Poe (nada mais previsível!), Ricardo Piglia sobre Tolstói, Rui Castro sobre Olavo Bilac, Luis Alfredo Garcia-Roza sobre Melville, P.D. James, considerada a herdeira de Agatha Christie, escreverá sobre Jane Austen e o nobelizado Saramago sobre Dumas — resta saber de o pai ou o filho. Jô Soares e Zuenir Ventura também participarão da coleção, mas sequer escolheram os autores.
Como se pode perceber, é uma lista de nomes respeitáveis. Resta saber o que leva escritores já consagrados, como Saramago, Rubem Fonseca, P.D. James, Scliar e Bernardo Carvalho, que contam com uma obra já solidificada, alguns considerados até canônicos, a escrever livros encomendados, de cunho meramente econômico. Vaidade? Ambição?
Mais vale, nestes casos, a confissão de Millôr Fernandes, um dos nossos maiores intelectuais, que diz não possuir obra alguma e que se esquiva raivosamente da alcunha de escritor. Para ele, que foi pago por mais de cinqüenta anos para compor em ritmo industrial suas peças, contos, crônicas e poemas, escrever e, por ventura, construir algo que venha a se tornar de reconhecida beleza, é um trabalho como outro qualquer. Como um pedreiro, barbeiro ou padeiro.
Aos otimistas de plantão, resta a esperança de ver, nesta coleção, um romance estranho, quase enjeitado pelos demais, como fora Canoas e Marolas, do gaúcho João Gilberto Noll, na coleção Plenos Pecados, da Objetiva. De resto, não há como fugir ao ressentimento e à paráfrase ao ver Rubem Fonseca, Bernardo Carvalho e Saramago escrevendo sobre “crimes literários”. É como jogar pérolas aos porcos. E que pérolas! E que porcos!