“Quase tudo o que aparece na narrativa eu escutei ou vi quando era pequena, na Galícia. Pensei que, através do testemunho oral, poderia captar com maior intensidade a cultura espiritual e essa dimensão mágica tão características do povo galego e que, de certo modo, também herdou a cultura brasileira. Nos contos está todo o legado de premonições, vidências e aparições derivados da superstição ou da religião”, afirmou a espanhola Cristina Sánchez-Andrade em entrevista à jornalista Juliana d’Arêde, do blog Vai Lendo.
É justamente se baseando nessa tradição oral que Sánchez-Andrade constrói seu romance As Invernas. A narrativa acompanha duas irmãs — conhecidas como Invernas — que voltam para a Terra do Chã, vilarejo onde nasceram e cresceram, na Galícia, depois de terem passado 15 anos fora. É o começo dos anos 1950.
A volta das irmãs é permeada de segredos. Por que voltaram? O que viveram nesses últimos anos? Juntam-se a isso várias questões não resolvidas entre os moradores da vila e o avô das meninas, já falecido, e uma sensação permanente de algo fora do lugar. Fica claro rapidamente para o leitor que há algo sendo escondido, ainda que os segredos só são revelados no final do livro.
A narrativa de Sánchez-Andrade se constrói de maneira fragmentada. A autora apresenta aspectos dos personagens aos poucos para o leitor, como um quebra-cabeça. Essencialmente um drama familiar marcado por questões políticas, detalhes do passado dos personagens que ainda têm alguma influência sobre a vida deles vão se mostrando lentamente, criando uma espécie de suspense na narrativa.
O clima de suspense, porém, não consegue escurecer completamente a narrativa. Apesar dos segredos, da política conturbada e eventualmente até crimes, a autora não faz uma narrativa policial. O livro é leve, muito mais como um conto de fadas ou uma história de amor, beirando em alguns momentos uma narrativa fantástica.
Muito do passado das personagens se relaciona com o avô e a atuação dele na política do período, o que continua encontrando ecos no pequeno vilarejo. Depois dos acontecimentos, as meninas são levadas para a Inglaterra como refugiadas. Lá, encontram trabalhos mal remunerados e crescem buscando esperança no cinema e numa vida melhor.
Sobreposição
A autora nem sempre se ocupa em fazer uma distinção clara entre as duas irmãs. Elas são basicamente iguais, exceto por algumas características, como a beleza, a entrega ao amor e o impulso de agir. É necessário um leitor atento para construir uma imagem mais individualizada de cada uma delas. Mas essa sobreposição é uma parte valiosa da narrativa, já que elas são vistas por várias pessoas da cidade como uma unidade. Usam disso, aliás, como uma espécie de disfarce e segurança. Essa sobreposição é tão presente que já começa no título: As Invernas.
Esse é, inclusive, um ponto destacado pela autora ao comentar a edição brasileira do livro:
Me encantou que tenham focado no tema do comportamento humano (com as ovelhas na capa), de como nós nos misturamos com a massa porque é mais cômodo e não temos muito o que pensar. Esse é um aspecto que me interessa muito, inclusive: as ações das pessoas que resolvem se “esconder” através da massa e como a massa anula a vontade particular do indivíduo. No geral, esse é um tema que, de uma forma ou de outra, costuma surgir nos meus romances. Definitivamente, somos como as ovelhas dessa capa.
Por outro lado, ainda que as irmãs sejam apresentadas em vários momentos como uma unidade, os poucos momentos de individualização são pontos marcados e fortes da narrativa, já que demonstram um desvio do padrão. São alguns dos momentos chave da narrativa, em que a vida das personagens começa a se encaminhar de uma forma diferente.
Outra característica da narrativa de Sánchez-Andrade é a tentativa de registro de oralidade. Essa aproximação já fica evidente na dedicatória: “À minha avó Isidora, que nos presenteou com todas essas histórias”.
Muito dessa influência está presente no que podemos chamar de acessórios da narrativa, ou seja, partes que não são centrais à narrativa principal do livro. São histórias de personagens que, muitas vezes, beiram um realismo mágico. Mas, além da inspiração temática, e os “causos”, que são memórias que ela tem da própria infância, outras características estilísticas a aproximam de um conto oral.
Uma das maneiras é a narrativa principal permeada por histórias não contadas. Essas narrativas paralelas nem sempre se fecham por completo, como em fofocas que vão passado de boca a boca: incompletas, desfiguradas, exageradas e criativas. São fragmentos de vida de outras pessoas que nem o leitor nem as personagens chegam a conhecer ou entender completamente.
Isso se alinha ao período narrativo do livro: em momentos de política conturbada, vários segredos e intenções se escondem por trás das ações dos personagens e o não dito marca, muitas vezes, uma geração. É o que acontece em As Invernas. E as escolhas feitas no passado e nunca explicitadas continuam encontrando ecos na vida dos personagens.
Outra grande característica do livro é o deslocamento temporal. Ainda que a referência à Guerra Civil Espanhola permita uma ligação temporal mais forte, em vários momentos é difícil localizar a narrativa no tempo. Se não fossem alguns momentos breves nem sempre muito explícitos, seria possível localizar a narrativa em um período muito anterior a esse.
Isso acontece em grande parte porque as referências à modernidade, como televisão e cinema, são diluídas em um contexto rural muito forte, em que a posse de animais é necessária à subsistência e em que a rotina acelerada ainda não tomou conta de tudo. Alinhado ao leve realismo mágico presente na escrita da autora, o resultado é um livro bucólico e contemporâneo ao mesmo tempo.
Como várias histórias de família, a vida das irmãs está marcada por amor e ressentimento, cuidado e sacrifícios. Tão complexa como pode ser, a relação das duas se constrói a cada página, por semelhanças e diferenças. De um jeito simples, o livro tenta mostrar a complexidade da vida e das pessoas. A autora mostra o mundo como uma intrincada rede de relações, na qual os personagens podem se esconder e passar despercebidos.