Ter amigos é como estar sempre embrulhada em um cobertor, na frente da tevê em que passa um filme antigo, tomando uma canecona de chocolate quente. Aconchegada. Vendo a fumacinha sair da boca, tão frio que está o dia — azul, tão azul. Ou como estar na varanda, vestido soltinho voando com o vento fresco. Em uma das mãos, um copo de suco de melancia — ou um sorvete de morango. Na outra, apertado entre os dedos, um livro que faça sorrir. É saber que se pode contar com aquele ombro — cheio de ossos, se daquele magricelo que abraça forte, ou que pareça uma ombreira, se do gorducho tão delicado — para deitar a cabeça e ficar ali. Quieta. Sem explicar nada, sem falar, sem nada. Nada. E, ao mesmo tempo, ter tudo. Tudo ali. Para sempre. Sem cobranças. Ah, nada de cobranças!
A amizade, creio, não é feita de cobranças. Mas de lembranças, sempre. Algumas frescas como suco de melancia, fruta doce, intensa. Outras mais mofadas, que ficam guardadas em uma caixinha poeirenta na cabeça, anos e anos que passam sem ser importunadas. De doídas. Ou de muito alegres. Mexer na tal caixinha pode trazer gratas surpresas. Palpitações, lágrimas, risos incontroláveis. Ou não trazer nada. O vazio. O oco daquilo que um dia já foi cheio. De alegria, de vida, de amor.
Vasculhando um pouco, pode-se lembrar do primeiro amigo. Aquele ursinho de pelúcia que ficava sobre a cama. Tão feinho, mas que guardava segredos como ninguém. Ou do colega de classe que dividia o Lanche Mirabel e o chocolate cheio de leite, quando a merenda preparada pela mãe era um ovo cozido. Ou daquela vizinha que emprestava o disco novo, LP quadradão que só os mais velhos podiam comprar na loja, porque proibido. Ou do moço magrelo que sempre andava com livros embaixo do braço, lendo em pé no ônibus cheio de gente. Uns ficam lá, na caixinha, bem no fundo. Outros, mais espertinhos, saltam para o quarto, a sala, o banheiro. Ficam perambulando para sempre. Mesmo que longe. Mesmo que mudos. Mesmo que tristes.
Mas mexer na caixinha poeirenta também é entrar em um mágico e misterioso terreno. É lembrar que sempre se quis escrever. Inventar histórias. Inventar amigos. Ter vontade de descobrir novos mundos, novas ilhas. Desconhecidas. É lembrar de amores, de almas, de corpos. É descobrir que sua melhor amiga é aquela menina de maria-chiquinha, olho repuxado, de tão apertado o elástico. Aquela que queria que a mãe mandasse Lanche Mirabel e não ovo cozido. Aquela que queria comprar um LP proibido. Aquela que queria emprestar um dos livros do moço magrelo para também ler no ônibus.
Virar a caixinha de ponta-cabeça é lembrar das noitadas regadas a cerveja, nos botecos de uma cidade cinzenta. As mãos entrelaçadas para selar um amor que durará para sempre. Dos cafezinhos no final do trabalho, do pão de queijo quentinho, para aplacar o estômago. Das longas cartas escritas e nunca enviadas (vergonha de não ser tão feliz na escolha das palavras quanto o que vai ler as “mal traçadas linhas”).
Não é fácil deixar a poeira baixar e pescar, lá no fundo, uma ou outra lembrança perdida. Não é fácil expor à mulher que agora tem contas a pagar (água, luz, telefone, apartamento, cremes anti-rugas) tudo aquilo que sonhou quando usava maria-chiquinha. Não é fácil lembrar que a pequena espoleta queria se casar aos 21 anos, como a mãe (tão linda com o vestido branco e o buquê composto por uma rosa vermelha acompanhada de um ramo de trigo, o sorriso largo). Ter três filhos homens. Um marido que soubesse de cozinha, como o pai (vira e mexe aparece com ervas cheirosíssimas para fazer a mágica do jantar). E milhares de amigos que a paparicassem. Sempre tão dependente do amor dos outros. Do carinho de quem quer que fosse.
Há quem faça essas revelações — não essas, exatamente, nada especiais para quem não conheceu a menina de maria-chiquinha ou a mulher cheia de contas para pagar — calmamente. Suavemente, como quem dança uma música lenta nos braços do amado, flutuando. Duas escritoras souberam muito bem de que caixinhas retirar a poeira. Li ambas. Demorei, porque entre um parágrafo e outro me lembrava de algo que estava escondido nas milhares de caixinhas que tenho guardadas. As duas (Lya Luft e Lygia Fagundes Telles) deram uma boa limpada nas caixas. A poeira baixou. Agora, só o barulhinho do mar ou do lápis correndo no papel em branco.
Lya & Lygia escreveram sobre amizade, especialmente. Mas também sobre livros, sobre medos, desejos, amores. Delicadamente. Lya, lírica. Em Mar de dentro, conta como a menina de tranças, que sempre queria saber de tudo, descobriu que seria escritora. Que inventaria gente. (Mas seriam pessoinhas minúsculas, para que ela pudesse mandar em todas, sem medo.) E Lygia, ligeira. Durante aquele estranho chá (achados e perdidos) tem palavras e memórias correndo livres, como se conversasse com um velho amigo na cozinha, enquanto pega os biscoitos para pôr à mesa.
(É difícil escrever um texto sobre livros que mexem com tantas memórias. O pensamento vai e vem, sem rumo definido — que me desculpem os mais objetivos. De qualquer forma, foi para falar dos livros que ganhei espaço no Rascunho. Então, a eles)
Durante aquele estranho chá é uma coletânea de textos (publicados ou inéditos) de Lygia. Textos alegres, da mocinha de boina que cursava Direito (curso muito masculino para a época — década de 40), que queria saber do mundo, das letras, da vida. Não é uma biografia, como podem pensar alguns. Porque escritores sempre acabam ficcionando até mesmo as biografias. São registros de conversas, memórias. Muitas embaçadas, mas sempre reconstruídas sob a ótica, agora madura (não velha), da escritora.
A história que dá nome ao livro passa-se em 1944. Mas Lygia lembrou-se dela apenas em 1993, quando lhe foi encomendado um texto sobre Mário de Andrade. Fazia 100 anos de seu nascimento. A paulistana vasculhou fundo a caixa empoeirada e lembrou-se de uma estranha conversa que teve com o pai de Macunaíma. Tomando chá. O rumo da conversa — que queria ser conduzida por ela, curiosa que estava ao encontrar um escritor tão moderno — mudava assim como a direção do vento. E com a suavidade dele. Mário de Andrade quis saber da menina. Da vontade de ser escritora, do curso de Direito, de seus namorados. Se ela preferia ser considerada bonita ou inteligente. Ela, mais do que depressa respondeu que preferia que a conhecessem pela inteligência. O escritor não concordava. Depois de uma risada comprida, explicou: “A beleza é tão importante, menina. Sei o que estou dizendo, eu que sou um canhão!” (p. 30). Depois da conversa toda, Andrade deu uma carta à jovem Lygia. Pediu para que ela lesse quando chegasse em casa. Leu. No dia seguinte, levou para a faculdade: iria mostrar às amigas. Mas acabou perdendo. E nunca contou o que havia na tal missiva.
Pelas outras histórias desfilam amigos maravilhosos da escritora: Carlos Drummond de Andrade e sua poesia transgressora; Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, casal delicado e atencioso com os escritos da escritora iniciante; Hilda Hilst, que amava e escrevia, para quem Lygia dedicou o texto Da amizade; Jorge Luis Borges, escritor de delicadeza ímpar, cujo único objetivo era não parar de sonhar para não morrer; Jorge Amado, com suas camisas coloridas e amor incondicional por Zélia Gatai; Clarice Lispector, amiga que conhecia “desde o começo de sempre”. E também ensaios sobre obras de Machado de Assis, sobre o papel da mulher na sociedade, sobre o duro ofício da escrita.
No final do livro, o leitor parece ser também um amigo de Lygia. Parece conhecer os anseios da jovem escritora e da mulher madura (aqui também não no sentido de velha, como não se cansa de dizer Hilda Hilst). A obra — que não deve ser lida como se fosse um romance, uma coletânea de contos, porque passa longe da ficção, apesar de também não ser biografia — é um convite à imaginação do leitor. Uma viagem ao mundo das letras através da lembrança de uma mulher experiente, viva. Cercada de amigos experientes e vivos — mesmo que apenas em sua memória.
PROSA-POEMA — Mar de dentro é poesia do começo ao fim. Delicado como marolinhas. Suaves como a brisa que vem de dentro do mar. “[…] Seremos como a menininha que brinca no tapete ao meu lado enquanto escrevo. […] Há pouco veio contar com olhos radiantes que tinham apanhado para ela um passarinho que entrara na sala. Depois de algum tempo, voltou dizendo que estava morto.
— Morreu — ela diz com olhos inocentes de quem ainda não sabe o que é perda e separação. — E a gente plantou ele na terra!
Me olha, cheia de expectativa. Digo “que lindo!” e por um momento sou essa criança também.[…] Porém, cúmplices silenciosas, não temos nenhuma dúvida: no jardim vai nascer uma árvore de passarinhos.” (p. 15).
A pequena menina de trancinhas era extremamente ligada à família. Viver rodeada pelo pai, pela mãe e pelo irmão pequeno era o que mais importava. Por isso fantasiava. Criava novos mundos, novos diálogos. Mas de tanto amor pela família e pelas histórias, acabava perturbando demais em casa. E os pais mandavam a menina passar uma temporada no sítio de uns amigos. Até que se divertia. Mas chegava um momento em que se sentia desamparada. Queria voltar para o aconchego da casa. “Para mim, qualquer ausência seria sempre a ameaça do definitivo abandono.” (p. 83)
Os amigos da pequena Lya — era ela mesma ou uma imagem refletida no espelho, apenas? — eram as flores do jardim (“que era meu reino”) e os livros. Lia tudo e muito. Ainda pequenina, decorava grandes poesias. Por puro prazer. Na aula, não queria saber de matemática, história ou geografia. Muito menos da maldita caligrafia (tinha uma letra feia demais, indisciplinada). Queria ficar olhando pela janela. Perceber o movimento do vento, as nuvens, as flores. “Por que eu não podia morar dentro de um livro, e ser, em lugar daquela menina que esperavam, uma invenção de mim mesma — uma história?” (p. 130)
Bom se todos se pudessem inventar. Deixar de lado a crueza da vida real e viver em fantasia. Florear com belas palavras os buracos causados pelo desgaste do tempo na memória empoeirada. Viver como se todos os dias fossem frios — mas azuis, tão azuis! E que se pudesse sentir sempre o aconchego do cobertor e do chocolate quente. Ou a leveza do vento em tarde morna, enquanto se ampara a cabeça no ombro do magrelo que ama os livros.