“Eu tinha dado poucos passos, quando, de repente saltou à minha frente um ágil e alegre leopardo. Astuto, de pêlos manchados, de todas as formas ele impedia que eu seguisse adiante. Não adiantava desviar ou buscar um outro caminho pois no final, ele sempre estava lá, bloqueando a minha passagem. Várias vezes tentei vencê-lo. Várias vezes falhei.” (A Divina Comédia – Inferno: canto 1)
Vivemos a Era do Nada e os valores mais “sagrados” desta sociedade(os de mercado) foram implodidos nos últimos dias por uma meia dúzia de fundamentalistas.
A ética é um valor relativo e a população mundial questiona-se sobre o lado em que está, tentando aí enquadrar-se na visão maniqueísta que divide o mundo entre bons e maus. A poesia é o alento para este mundo, aliás a boa poesia é a reserva ética do mundo e o poeta, portanto, guardião de valores absolutos.
No Brasil, há uma nova safra de poetas realmente dignos do título. Um que vem obtendo merecido destaque é o paulistano Claudio Daniel que ganhou o prêmio Redescoberta da Poesia Brasileira, da revista Cult.
Ele é definitivamente um dos mais talentosos poetas brasileiros da atualidade e o livro que define as diretrizes marcantes de uma dicção própria é A Sombra do Leopardo(Azougue Editorial, 87 págs.), sua terceira coletânea.
O poeta inventivo bebe na opulenta fonte de Cabral, amplia e muito os horizontes dos concretos, outra referência evidente em seus textos, e contribui com sensibilidade, sutileza e equilíbrio do olhar sobre as cores do mundo.
De Edgar Allan Poe, herdou a genialidade de transformar em música o estardalhaço do silêncio poético, que revela, expõe e martela seu ritmo.
A Sombra do Leopardo tem em rápidas metáforas o catalisador ideal para a alquimia da literatura de Daniel. A maioria dos poemas tem versos curtos e a edificação do poema é solidificada pelo ritmo. A elipse vastamente usada revela as dúvidas existenciais, os conflitos do poeta que reviram e instigam o leitor. Um poema exemplar desta coletânea é Poros, no qual trevas e luzes se debatem pela materialização do etéreo.
A poesia de Daniel é forte, tecnicamente apurada e desafiadora: basta uma leitura rápida para ficarmos à sombra e à mercê do Leopardo, que não chega a ser intransponível, mas que dá a oportunidade rara de transcender sem nem mesmo tirar os pés deste mundo doente.
Poros
O
Verde,
Sua pele
ácida. Tocar
os poros
do verde, florir
metálico. Ouvir
sua voz de asa
e sombra.
Olhos, faisões
de cegueira.
Jóias de irada
divindade.
Abelhas e lagostas
amam-se, odeiam-se,
tulipas caem
na goela
do tempo.
Tuas mãos tateiam
a nervura imprecisa
da cicatriz
e não há mar,
nem pão, nem página.
Alucino-te
ao mirar-me
no silencio
de uma laranja
quadrada.
Aqui, nada mais viceja.
Lacraias afogam-me
em tua lágrima
e se fecha a porta
esquerda. Toda palavra
me fere com sua cor.
Quando cessa
o canto, calados,
ouvimo-nos
em um corte
azul.
…
Dante
Um jardim, ver a sombra e além
da estrela, ver a terra
furiosa; tempo
é o que incendeia,
fera — insânia —
esfera; e de esfera
em esfera, afoga
teu suplício
em gruta de ecos.
Chora, do fundo
do olho, clama
ao Deus cabalístico.
Até vislumbrar
a sombra do leopardo;
até saber que forma
é vazio, silêncio
(ou brancura)
culto em palavra
e paisagem.
Até saber que Dor
é um modo de ver
o escuro, outra
hipótese
de luz.
…
O poeta pedólatra
Até
a última carícia
do prazer atípico longe
dos seios estéreis —
plumas ou punhais, não
músculos enrijecidos
de basalto, suor de metal
libidinoso — assim os jaguares
mastigam iguanas de poliéster
sob o sol. Porém, a lenta
desaparição do olhar
(estranha metamorfose)
faz o tempo esférico
ser menos do que o espaço
indefinido pelo tato
— diálogo mudo
entre as mãos e o vazio.
(Fica o consolo das narinas,
o odor — para ele —
tão sweet love, sweet honey
de pés fortes, grandes e sujos
e a voz das palavras, o mar
interminável das vogais.)
O poeta e jornalista Cláudio Daniel nasceu em 1962, em São Paulo. Ele editou a revista Gaia e publicou os livros de poesia Sutra (edição do autor, 1992) e Yumê (Ciência do Acidente, 1999). Em 2000, Daniel participou de uma coletânea de traduções do cubano José Kozer, Geometria da água e outros poemas, publicada pela Fundação Memorial da América Latina.
O autor colaborou em diversas revistas e jornais literários com poemas, traduções e ensaios entre eles Azougue (SP), Suplemento Literário de Minas Gerais (MG), Dimensão (MG), Cult (SP) e Medusa (PR).
Participou da antologia bilíngüe de poesia brasileira contemporânea organizada por Reynaldo Jiménez publicada na revista Tsé-tsé (Argentina, 2000).