A cabeça boa não é a leitura ideal para quem deseja conhecer a obra de Lilian Sais. A contracapa anuncia “um romance único — a um só tempo sensível e absurdo”. O leitor de romances poderá ter sua expectativa frustrada ao perceber um livro fino e cheio de espaços em branco. Mesmo um fã de romances experimentais e arejados, como O peso do pássaro morto, de Aline Bei (em versos, pouco texto nas páginas), haverá de concordar que A cabeça boa é mais um conto que um romance. O volume é bonito e funciona bem (o ritmo segue a virada das páginas), mas a experiência de leitura é breve — menos de uma hora, e o livro acaba.
Há uma situação de base: uma mulher sozinha, doenças, lembranças do pai e da mãe, um jantar de reencontro com certa prima Juliana. Os elementos se expandem para uma pequena confusão: um jogo de tênis no banheiro do apartamento, gelo, éguas e o síndico reclamando. A narrativa cresce para a desordem, até ser interrompida por um corte metalinguístico: “Isto é um trote”, a personagem nos alerta.
No início, certas imagens parecem sugerir um tom alegórico: o apartamento fica em frente à linha do trem, “o último antes da fronteira”. Sinalizadores, copos de água, um mapa da América do Sul — elementos inseridos em formas básicas, sem os detalhes de uma ambientação realista — poderiam ser interpretados como símbolos. Mas a alegoria é vaga: fronteira de quê? Entre vida e morte? O texto oferece poucas pistas para interpretação. Em vez de alegoria, nos encontramos num cenário surreal, onírico. “Isto é um trote”, o texto avisa. Desista de buscar um sentido.
Ao mesmo tempo, talvez hesitando na aposta pela experimentação, a narrativa traz marcas temporais bem organizadas: “passam-se os anos”, “desde a aparição da égua”, “logo no começo”. As referências ajudam o leitor a se localizar entre os fragmentos. A narração brinca com esse efeito: “se esta for uma história linear”, provoca-se. De forma minimalista, há uma linha coerente. Abre-se com uma dança, uma “valsa improvisada”. Ao final, movimentos e barulhos estranhos incomodam o vizinho. “Estamos dançando”, responde a personagem. Algo se amarra, ainda que o significado seja embaralhado.
Nada disso é defeito — ser breve, ser onírico poderiam ser virtudes do texto. O que esfria a leitura é o estilo mediano dos fragmentos iniciais:
Você não está sozinha (…) Você não precisa de música para dançar. Nunca precisou. (…) Você preenche o espaço, para lá e para cá. Preenche tudo.
Nada sedutor
Imagem meio gasta, frases comuns. Não seduzem pela beleza nem pelo significado, pois se compreende pouco. Também não criam mistério: alguém dançando sozinha? Tá, e daí? O cenário inicial se arma dessa forma meio sem graça. O texto demora a oferecer parágrafos em que síntese e alusão ganhem força estética.
A beleza finalmente se mostra a partir da página 20. Para um livro tão curto, é meio tarde. Numa narrativa breve, a primeira frase poderia ser muito mais forte do que esta: “Você sabe que quando começar a falar eles vão imaginar que você está sozinha”. Ainda que se enxergue um paradoxo (eles deveriam imaginar que você não está sozinha), a construção cheia de ques (“que quando”), o ritmo descuidado (“começar a falar”) surpreendem negativamente. Em outro momento, lemos: “elas não são tão boas contadoras de história”. Não são tão? A poeta parece se dedicar menos à forma de sua prosa.
No texto de orelha, lemos que o livro é parte da “tetralogia da perda”, obras em que a autora escreve sobre o luto após a morte do pai. Para além da relação entre obra e biografia, o “pai” do livro é um grande personagem. A “cabeça boa” do título é uma tirada dele. Uma ótima passagem mostra sua argúcia:
“Tenho medo de que o botijão exploda do nada”, você diz. Ele responde: “Pode ficar tranquila. Um botijão de gás nunca explode”. E completa: “O que explode é o ambiente em torno do botijão de gás”.
Os momentos de humor, alguns comentários pincelados aqui e ali (“Achei que você vivia de renda.”), são nossas recompensas pela leitura. Entretanto, ao leitor que tenha curiosidade pela autora, sugere-se começar por seus livros de poesia.