Dalton é Goethe e Curitiba, Macondo

É preciso tentar ler Dalton Trevisan por outro viés que não o fetichista. Aqui, duas sugestões de leitura do maior contista brasileiro vivo.
Dalton Trevisan, autor de “Pico na veia”
01/08/2001

Por alguma razão misteriosa, que não vem ao caso agora investigar, este Rascunho, em seus dezesseis números, jamais comentou um livro de Dalton Trevisan, provavelmente o único escritor curitibano que tenha realmente acrescentado algo à literatura brasileira. E antes que me venham acusando com todas as patas de reacionarismo, defendo-me dizendo que, sim, temos talentos, mas o tempo ainda não os lapidou. Dalton Trevisan, por sua vez, é um escritor já curtido por estes ventos que sopram de lá para cá e que criam ídolos hoje para destruí-los amanhã. Dalton Trevisan renasce a cada dia em que é morto por seu pior inimigo: ele mesmo.

Curioso pensar assim. Dalton Trevisan é ao mesmo tempo algoz e vítima de si mesmo, da obscuridade que se impôs. Numa época em que a imagem é a dona de todas as verdades possíveis, ele optou simplesmente pela força de sua narrativa, desdenhando para os fotógrafos que provavelmente já fizeram plantão em sua casa, e até mesmo para simples curiosos que todos os dias escalam um pequeno degrau no muro de sua casa para expiar-lhe o jardim e, assim, quem sabe, contemplar o homem que deu a Curitiba um de seus mais ricos patrimônios: Nelsinho e a Polaquinha.

Quando leio pessoas escrevendo sobre Dalton Trevisan percebo certa reserva. Ninguém quer entrar no mérito desta questão que é o escritor escondido dos holofotes. Talvez por medo de represálias, já que é sabido de todos os que têm algum tipo de contato com a literatura que se faz aqui (e Dalton é o sol: tudo gira ao redor dele, de uma forma ou de outra), os articulistas procuram ignorar este fato que é, sim, relevante até para a compreensão dos textos de Dalton Trevisan. A teoria que defendo neste texto não existe sem uma breve mas importante especulação sobre Dalton-escondido: a sua Curitiba (a dele) não é a Curitiba que está no mapa, como pensam muitos.

Antes, contudo, vale a pena dar ao leitor leigo em Dalton Trevisan algumas informações sobre a vida dele: nasceu em 1925, mesmo ano, portanto, de outro recluso famoso, Rubem Fonseca. Trabalhou na fábrica de cristais do pai. É formado em Direito. Estreou na literatura muito cedo, escrevendo contos para o jornalzinho do colégio. Na década de 40, fundou uma das mais prestigiadas revistas literárias do país, a Joaquim, na qual colaboraram Drummond, Bandeira e Vinícius de Moraes, só para citar alguns nomes. Sempre escreveu contos. Jamais se aventurou pelo romance. A novela A Polaquinha, seu único flerte com uma narrativa mais longa, é entendido pela maioria como um grande conto. Hoje em dia, adotou uma postura radical em relação à sua própria linguagem: abolindo todo o supérfluo no conto, escreve o que chama de haicais, sem jamais sê-lo. Seus contos se aproximam, sim, da poesia, mas jamais deixam de Ter uma grande linha-mestra, uma narrativa por muitas vezes barroca, na cabeça do leitor.

Adianto-me na análise, entretanto. Convém primeiro pensar em Dalton Trevisan sob o prisma daquele personagem que escolheu para si. Ou que escolheram para ele. Chamam-no “o vampiro de Curitiba” sem jamais atentarem para a exatidão da alcunha. Não que Dalton Trevisan “sugue” o sangue da cidade, como querem os mais simplistas. A denominação vampiro para Dalton vai muito além desta simplificação de origem religiosa, creio. Se Dalton é vampiro, é porque é eterno — ou pelo menos porque busca a eternidade, ou ainda porque tem a consciência da eternidade.

Esqueçamos por um minuto do homem que não concede entrevistas nem se deixa ser fotografado. Pensemos no vampiro clássico, de Bram Stoker. É uma figura cuja sede de imortalidade condenou à angústia eterna. Vivo, sim, para sempre, sim, mas infeliz para sempre, é bom salientar. Neste sentido é que não somente Nelsinho, protagonista de O Vampiro de Curitiba (Ed. Record), mas também todos os Joões, Josés, Joaquins e Marias, são vampiros. Todos eles almejam a vida eterna e tudo o que conseguem é uma existência marcada pelo conceito de danação, ou seja, a imutabilidade da vida.

Voltando ao Dalton-escondido, ao Dalton que se esconde, veremos o quanto o prisma que se lhe grudou é falso porque diz respeito a sua obra e não ao homem que a escreve. É como se Goethe (que me perdoem os autófagos curitibanos, mas a comparação é mais que acertada) fosse condenado por ter feito um pacto com o demônio por seu Fausto. Nada mais justo, portanto, que esta tentativa, na maioria das vezes frustrada, é verdade, de separar o homem do autor por meio do isolamento.

Há mais um componente que torna a obscuridade de Dalton-escondido louvável, porque nos permite subsídios para compreender seus contos: a Curitiba de Dalton não é a mesma Curitiba em que o Rascunho é feito. O erro é comum e perdoável numa época em que a abstração não faz mais parte da diversão da maioria das pessoas. O equívoco, contudo, tem-que e deve ser apontado, ou melhor, sugerido. Até porque isso evitaria que Dalton fosse confundido com os que o cercam, crente de que sua carcaça é doce. A Curitiba de Dalton é a Macondo da literatura brasileira.

Para quem não se lembra, Macondo era o nome da cidade inventada pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez em seu Cens Anos de Solidão. A cidade tem algumas características da pequena Aracataca, mas de modo algum é Aracataca. Do mesmo modo foi concebida a Curitiba de que trata Dalton Trevisan em seus textos: como uma cidade que tem nome de cidade, tem características da cidade onde o autor mora, mas é, sobretudo, uma cidade inventada. Faça-se exceção, aí, aos textos explicitamente políticos, como Curitiba Revisitada, no qual ele comenta a reforma urbana porque passou a Curitiba-do-mapa nas últimas décadas, com seus olhar crítico.

Na verdade, estas duas observações requerem uma nova leitura da obra de Dalton Trevisan. Seus contos sem a alcunha de vampiro que persegue o escritor ganham em profundidade psicológica, em densidade narrativa e até em um humor negro que pontua todos os contos. Também a transposição do cenário das histórias para um lugar qualquer, uma Macondo qualquer, permite vislumbrar a imensa universalidade da obra trevisaniana, comparável, somente, a dois outros grandes nomes da literatura brasileira: Machado de Assis, com seu Rio de Janeiro que caberia muito bem numa São Petersburgo de Dostoievski, e Guimarães Rosa, com seu sertão mineiro plenamente adaptável a um cenário urbano qualquer.

Não posso terminar este texto sobre Dalton Trevisan sem escrever algumas linhas sobre aquele que é um dos melhores contos escritos em língua portuguesa: A Noite da Paixão. No conto, Nelsinho (“o vampiro de Curitiba”, lembrando sempre que vampiro aqui se refere à danação do personagem), em plena Sexta-feira Santa, está à cata de prostitutas. Na porta de uma Igreja, acaba por encontrar uma, desdentada e banguela. Leva-a para um quarto de hotel barato. Com o sol quase nascendo, os dois exaustos, ele a olha, ela o olha e ambos saem para lados opostos, ele provavelmente a caçar prostitutas novamente, ela com certeza a catar fregueses como Nelsinho.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho