Era uma vez um camponês siberiano que conta uma história a um professor que a transforma em um poema sobre um czar mau e um homem bom que consegue se casar com a princesa depois de cumprir tarefas aparentemente impossíveis com a ajuda de um cavalinho corcunda. Censurada, a história continua a circular e acaba se tornando um clássico já em período soviético, pelo seu conteúdo de justiça social. Vira filme, recebe várias adaptações em prosa e é traduzida em outras línguas europeias. A tradução da tradução aparece em uma coletânea brasileira, é utilizada por um poeta popular pernambucano e transformada em um folheto de cordel intitulado A princesa Maricruz e o cavaleiro do ar, na década de 1960, mais de cem anos depois da publicação do poema russo. Aí passou a ser cantada em feiras para sertanejos que também experimentavam um contexto de desigualdade e injustiça e, na caatinga, puderam se emocionar com uma história nascida nas neves da Sibéria. Como resume bem a autora:
O que é do povo volta a ele, o que era prosa se faz verso, o que era verso se faz prosa, assim sucessivamente, um fenômeno muito forte e emocionante de acompanhar.
Esta trajetória tão mirabolante e fantástica quanto o “conto de encantamento” que vai sendo transmitido e reapropriado até chegar no Nordeste, é objeto do primeiro dos quatro ensaios que compõem Matrizes impressas do oral: Conto russo no sertão. Jerusa Pires Ferreira estuda a literatura de cordel há mais de três décadas e já publicou vários livros sobre este tema e sobre as relações entre a memória, a oralidade e a escrita. Nos três ensaios restantes, a autora continua um tour de force em que dialogam psicanálise, filosofia, teoria literária, linguística, sociologia e antropologia (a lista não é exaustiva). Este arsenal teórico é utilizado em prol de uma boa causa, um avanço conceitual que permite:
ultrapassar dicotomias empedradas como a famosa popular versus erudito, passando a entender tudo isto como um processo contínuo de transmissão e uma espécie de tradução cultural permanente.
O processo que vai do poema de Ierchóv ao cordel de Severino Borges, todavia, seria ainda mais complexo. A recriação se faria em dois níveis. Em um, chamado de “sistema secundário”, “vão se inserindo detalhes das práticas sociais”, isto é, o poema vai ganhar uma cor local, vai articular-se a um outro espaço/tempo. Desnudando esta articulação, Jerusa Pires Ferreira relativiza o peso da tradição oral nordestina, à qual se costuma atribuir “um poder de originalidade e de criação que não é somente a sua”, já que além do “sistema de oralidades” há que levar em conta também a “matriz impressa” que se relaciona diretamente com o “universo da tradição popular”, inspirando-a, como no caso já mencionado. Isto é reafirmado no segundo ensaio, em que a autora demonstra como Czar Saltan um conto de Puschkin, escrito em 1831, também a partir de uma história que lhe fora contada de viva voz, irá transformar-se no folheto O romance do príncipe Guidon e o cisne branco, publicado em 1974 por Severino Milanês da Silva. Aqui o leitor pode contar com um verdadeiro presente: uma tradução inédita do conto russo feita por Boris Schnaiderman e o fac-símile do cordel que recriou a história, permitindo confrontar as duas “versões” de uma deliciosa história de três irmãos, dois invejosos e maus e outro, ao mesmo tempo ingênuo e engenhoso, que acaba também por se casar com uma princesa que, como entrega o título, havia sido transformada em um cisne.
Significados centrais
Para além da recriação da história em outro contexto, o que sem dúvida leva a mudanças e adaptações, a autora afirma ainda que há a manutenção de “significados centrais”, que se apoiariam “na força semântica e estruturada da matriz universal dos contos de encantamento”. Esta expressão, “matriz universal”, reaparece sob várias formas ao longo do livro: “texto universal”, “arquimatriz”, “grande matriz oral” e em termos semelhantes, como “grande lastro de memória ancestral” e “megatexto”, que apontariam para a existência de um “pensamento mitológico enraizado e em permanente recriação”. A história do Cavalinho corcunda, por exemplo, teria sua origem, para além de um antigo conto popular siberiano, em um “possível repertório indo-europeu”, isto é, o nascimento da história se perderia na bruma dos tempos, ou, como diz Jerusa Pires Ferreira, remeteria “a um tempo que não nos permite acompanhar concretamente quando tudo começa”.
Onde estaria a explicação para a existência do que ela chama de “bases míticas imemoriais”? Seria uma manifestação do chamado “inconsciente coletivo”? Esta hipótese é rechaçada:
Aí não se está pensando em inconsciente coletivo, mas em coletividades concretas que vão interpretando e realizando linguagens imemoriais e já prototipadas através da transformação pela voz de seus poetas. É o ancestral em novos corpos.
A autora esboça uma explicação histórico-sociológica ao salientar que “nas sociedades tradicionais o elenco de situações é relativamente pouco numeroso”, mas não parece atribuir a isso um peso suficiente para explicar as recorrências e a permanência dessas “bases míticas”. Ela tampouco chega a dar uma resposta clara a esta questão. Aqui o leitor tem que navegar em um mar de erudição ao mesmo tempo encantador e perigoso, em que a todo tempo esbarra com conceitos especializados que são citados mas não totalmente esclarecidos, como “circulação intersemiótica”, “significante icônico”, “poder figural”, “presentidade do corpo e do olho”, “interimagicidade” e outros.
A este respeito, o que fica patente é a relação muito forte entre o ouvir e o ver, em que a fala e o gesto (pensemos em um cordelista apresentando sua história ao público) suscitam uma verdadeira visualização imaginada. Inversamente, o conto é contado a partir de uma espécie de matriz visual, como a autora chega a afirmar:
Tem-se a impressão de que o figural preexiste e que é ele que permite toda uma reconstituição de visualidade que se materializa nas várias linguagens da narrativa oral.
De fato, este aspecto quase “cinematográfico” da narrativa oral está claramente presente desde os primórdios da literatura ocidental. Pode-se ler a Ilíada, originária de canções entoadas durante séculos pelos aedos, como se fosse o roteiro de um filme de ação.
Os quatro artigos de Matrizes impressas do oral fazem a cabeça dar voltas, no bom sentido. A escrita é ao mesmo tempo elegante e caleidoscópica, apontando na direção de várias possibilidades. Creio que uma das vias de leitura mais proveitosas reside no entrelaçamento do oral e do escrito em um processo contínuo e sem fim. No caso da literatura brasileira, o exemplo de Guimarães Rosa demonstra esse vínculo, que o próprio autor fez questão de “documentar” em vários contos como em Corpo fechado, presente em Sagarana. O produto mais bem acabado desta dinâmica é a obra-prima Grande sertão: veredas, exemplo maior das possibilidades infinitas desta dialética entre a oralidade e a escrita.