O poeta Dante Milano (1899-1991) tem, finalmente, sua Obra reunida, com a chancela definitiva da Academia Brasileira de Letras, no volume 21 da prestigiosa coleção Austregésilo de Athayde. Organizada por Sérgio Martagão Gesteira, que também procedeu ao estabelecimento do texto, e com uma acurada apresentação crítica de Ivan Junqueira, o alentado volume de 532 páginas reúne toda a poesia do autor, além de traduções, prosa, textos sobre literatura, dois ensaios, algumas cartas e, ao final, uma biobibliografia comentada. Gesteira juntou ainda, nesta homenagem, o poema Terzinas para Dante Milano, no qual Ivan Junqueira celebra a presença e o legado do poeta, e se declara “seu herdeiro e seu irmão”.
Posta em evidência, a obra de Dante Milano emerge da penumbra e passa a reclamar seu lugar no sistema da moderna poesia brasileira do século 20. Sim, porque nos panoramas oficiais, o poeta carioca, que estreou em 1920 e apoiou à distância a instauração e o desenvolvimento do movimento modernista, sem nele se engajar diretamente, não é uma figura destacada. Muitas vezes seu nome não é sequer citado.
Alguns atribuem este esquecimento à escassa presença editorial do poeta que, recluso e avesso às glórias efêmeras, manteve-se à margem da vida literária, embora fosse reconhecido por grandes nomes como Manuel Bandeira, João Cabral e Drummond. Seu único livro, editado à sua revelia graças a uma conspiração de amigos, veio a lume em 1948, pela célebre José Olympio. E foi reeditado, com acréscimo de inéditos, em 1958 (Agir) e em 1971 (Sabiá). Em 1979, numa edição da UERJ/Civilização Brasileira, toda a sua poesia foi reeditada, acrescida de boa parte da prosa e das traduções de poesia. Postumamente, saiu pela Editora Firmo, de Petrópolis, a última edição de suas Poesias (1994). Assim, acreditamos que a maior responsável pelo esquecimento imposto ao poeta não foi a “escassez editorial”, e sim a sua posição independente, à margem das tendências estéticas comprometidas com os desdobramentos modernistas, agravada por sua reclusão literária.
A rigor a poesia de Milano não se enquadra nos figurinos modernistas stricto sensu. E isso sempre foi, para os críticos — formados pela mentalidade modernista —, um critério de exclusão. Basta lembrar que os poetas da chamada Geração de 45 foram sumariamente execrados por “trair” os ideais de 22, acusados de adotar procedimentos criativos “superados” e passadistas. No que concerne a Dante Milano, a sua exclusão é agora um problema a solucionar, já que, de fato, o poeta não assumiu uma posição modelar e, portanto, canônica, nos grupos herdeiros da Semana de 22. Ivan Junqueira chama a atenção, com muita propriedade, para o fato de que “o Modernismo pouco ou nada tinha a oferecer-lhe em termos de subsídio literário ou de plataforma estética. E mais: à época da agitação modernista, o poeta Dante Milano já estava pronto, infenso, portanto, a quaisquer aquisições mais profundas e radicais do ponto de vista formal, ainda que aberto e sensível às conquistas expressionais do movimento” (pág. 21). Isso explica muita coisa e põe em xeque os critérios de eleição dos poetas representativos, se baseados apenas na sua contribuição modernista à poesia brasileira do século 20. Aliás, o poeta baiano Sosígenes Costa (1901-1968) tem uma trajetória semelhante à de Milano. Era igualmente avesso à vida literária e publicou, também por iniciativa de amigos, apenas um livro em vida, Obra poética (1969). Como Milano, Sosígenes foi posto à margem, limitado a notas de rodapé dos panoramas, embora tivesse deixado uma volumosa produção que, reunida e editada na Bahia, em 2001, por ocasião de seu centenário, soma 531 páginas.
Esses poetas emergem do limbo com uma força poética extraordinária e nos estimulam a repensar as classificações, as listas de nomes, as antologias e o próprio cânone, impondo-nos a obrigação de rever os panoramas críticos e os conceitos de avaliação. Na verdade, trata-se de poetas modernos, para além dos ismos taxionômicos e classificatórios. Eles requerem uma outra atitude crítica, não restritiva e agrupadora, mas inclusiva e reconhecedora, disposta a avaliar cada obra poética e cada autor em sua singularidade, minimizando o critério das filiações e da presença ostensiva na vida literária da época. Por este prisma, poetas como Sosígenes Costa e Dante Milano ganham relevo e importância, pela contribuição particular e pelo que acrescentam à poesia, independentemente de sua “desatualização” com os procedimentos correntes de seu tempo, muitos dos quais simples modismos passageiros. Esgotados o impacto e o barulho dos ismos, essas obras vão aos poucos se fazendo notar, ampliam-se as leituras e os admiradores, conferindo-se aos autores o reconhecimento que, por póstumo, resulta talvez mais consistente e duradouro.
Nesta Obra reunida, a poesia de Dante Milano convida o leitor a uma viagem fascinante por um terreno lírico praticamente desconhecido. Há muito que se apreciar e estudar na sua poética. A aparente simplicidade dos assuntos, o vigor do pensamento metafísico, a confeição cristalina dos versos, o ritmo e a musicalidade personalíssimos, a clareza das imagens e do vocabulário, a requintada ironia ao tratar de questões da existência, da vida, do amor e da morte.
Alguns estudiosos assinalam a sua aproximação lírica com Manuel Bandeira, seu amigo e admirador, o que é muito justo, sobretudo se levarmos em conta um poema como Lágrima negra (pág. 157). Mas é possível sentir também em alguns de seus poemas uma certa consangüinidade com a poesia de Cecília Meireles, no tocante à concepção musical dos versos, à leveza das imagens e à visão do poeta como ser devotado à própria poesia. Para especular, vejamos os versos de Dante, no poema Divertimento, nos quais afirma: “Acariciar a água de um rio/E sentir-lhe o estremecimento/Da pele, o fundo calafrio./Eu distraído, mas atento,/Pensando…em quê? Sério, sorrio…/Oh secreto divertimento.” (pág. 133). Confira-se, ainda, Descobrimento da poesia (pág. 21), que mostra, em certa medida, um impulso lírico correspondente, em sua concepção, ao poema Motivo, de Cecília Meireles.
Como poeta, Dante Milano também cuidou de questões literárias. Nos seus textos sobre literatura avulta, sobretudo, a opinião de um leitor envolvido, reflexivo, lido e bem-informado. Em geral, sua análise é intuitiva, sem aparato crítico nem método fechado, mas com a clarividência e a sutileza que a sua sensibilidade de poeta e leitor atento lhe faculta com naturalidade. Geralmente curtos, seus textos refletem posições pessoais, de autor mesmo, perante questões de interesse teórico, mas se mantendo sempre como uma escrita literária. Ele reflete, opina, comenta, mas sem impor ensinamentos a quem o lê. São interessantes suas impressões sobre o conceito de originalidade em literatura, suas reflexões sobre Dante Alighieri, Baudelaire, Mallarmé, Antero de Quental, Augusto dos Anjos, Joaquim Nabuco, Alberto de Oliveira, Luiz Delfino, Graça Aranha. Seu pequeno estudo sobre Castro Alves é antológico, pelo equilíbrio do seu ponto de vista, ao valorizar a tradição, criticando certa tendência do momento. “A poesia moderna e suas teorias quiseram isolar-nos demais do Passado. De todo o monturo da literatura passada, poucos nomes resistem à nossa exigente admiração”. E adiante: “Porém, às vezes, penso: se Castro Alves não existisse? Então vejo a falta que ele faria ao Brasil, à sua literatura paupérrima. (…) Ele foi uma etapa, uma etapa gloriosa…” (pág. 454). Destacam-se ainda as suas considerações sobre a condição do poeta na modernidade, sobretudo nos textos Poesia e burguesia (págs. 416-418) e Separação ou decadência do poeta (págs. 426-428), nos quais trata de questões ainda hoje atuais nas discussões teóricas da poesia. Já nos dois ensaios, O verso dantesco e Leopardi, observa-se, nitidamente, a capacidade analítica e o senso crítico de Dante Milano.
Outro legado valioso de Milano é, sem dúvida, a sua tradução de poesia: Dante Alighieri (três cantos do Inferno), Charles Baudelaire (38 poemas das Flores do mal), Mallarmé (três poemas), Plutarco e Shakespeare (Antônio e Cleópatra). A importância desse corpus se deve não somente pela contribuição em si, mas pela lição que acrescenta à difícil arte de traduzir poesia, a par de sua concepção e seu talento ao propor soluções originais, ao recriar poemas célebres da tradição literária universal.
Nesta Obra reunida a apresentação do poeta, crítico e tradutor Ivan Junqueira é de grande importância, pois ultrapassa o mero caráter introdutório. Sua abordagem reorienta críticos e ensaístas, ao apontar critérios e caminhos para uma compreensão da obra e da personalidade poética de Dante Milano. Junqueira discute a condição de “maior vocação póstuma” outorgada ao poeta pelos que o conheceram de perto. Passa em revista opiniões de poetas e críticos como Manuel Bandeira, João Cabral, Drummond, Sérgio Buarque de Holanda, Franklin de Oliveira, Paulo Mendes Campos, todos ressaltando a grandeza da poesia milaniana. Junqueira também destaca aspectos fundamentais da obra do autor, para caracterizar a sua “poética do pensamento emocionado” (pág. 22), o que o aproxima do pensamento estético de T. S. Eliot e de Fernando Pessoa, segundo o critério do “objective correlative” (pág. 23) e a idéia de que a poesia é produto do “pensamento que se emocionaliza” (pág. 24). Numa visão estritamente textual, o ensaísta destaca os elementos estilísticos que constituem a poesia milaniana, chamando a atenção para a sua “irrepreensível unidade — unidade de forma, de estilo, de linguagem, de abordagem temática, de ritmo e até de vocabulário” (pág. 24). Junqueira não apenas afirma isso, mas o demonstra analiticamente, procedendo ao estudo de passagens significativas de diversos poemas, enfatizando os aspectos temáticos e estilísticos do autor.
Ivan Junqueira comenta também a escassa, mas expressiva fortuna crítica de Dante Milano. Dialogando com a opinião crítica de Sérgio Buarque de Holanda, concorda com a noção de “realismo estético” para explicar a singular posição do autor na sua época. Com Franklin de Oliveira, concorda que na sua poesia a emoção “está governada pela inteligência, refeita, restaurada, reconstituída sob o império da lucidez” (pág. 43). Já Paulo Mendes Campos considera Milano um antilírico. Junqueira não o refuta inteiramente, mas relativiza essa opinião: “Há lirismo, sim, amiúde sinistro, mas também talvez fantasmagórico, talvez algo visionário.” E, logo adiante: “Lírico ou antilírico, o poeta nos revela de fato um acentuado fascínio pelos aspectos sinistros da vida” (pág. 48). Ao cotejar a poesia de Dante Milano com a tradição universal, relacionando-a ao pensamento estético de Wordsworth, Eliot, Pessoa, Pound, e destacando sua predileção por Dante Alighieri, Horácio, Virgílio, Leopardi, Camões, Baudelaire, Mallarmé, autores sobre os quais escreveu estudos e/ou dos quais traduziu vários poemas, Ivan Junqueira dá uma chave de abordagem do poeta carioca, para além de um quadro estritamente local, apresentando-o numa perspectiva bem mais ampla de análise. Por isso, sua apresentação crítica constitui uma matriz seminal de análise, oferecendo não só uma súmula estrutural da poética milaniana, mas também um enquadramento de abordagem que poderá orientar futuros estudos sobre o autor.
Como organizador, Sérgio Martagão Gesteira mantém-se discreto, contentando-se em assinar apenas uma Nota explicativa (págs. 53-58), adequado modo de esclarecer os critérios, as escolhas e os procedimentos de seu trabalho. Nada mais louvável, pois a obra fala por si mesma. Ao organizar e fazer o estabelecimento do texto, com as cuidadosas correções e atualizações ortográficas, Gesteira dá uma contribuição importantíssima para o acervo bibliográfico da poesia brasileira. Sem dúvida, um trabalho de muito mérito, digno de um competente pesquisador universitário.