Osso, de Rodolfo Witzig Guttilla, é uma colagem em que versos realizados em diversos momentos e estilos são enfeixados em uma interessante estrutura dividida como um esqueleto: crânio, vértebras, sacro, tarso, falanges. A ideia é muito boa, embora essa estrutura por vezes não pareça tão integrada à semântica dos poemas, como no Poema sujo, de Ferreira Gullar, por exemplo, que fala do corpo. Mas isso não chega a comprometer a excelência do livro, dentre os mais interessantes publicados atualmente no Brasil.
O palíndromo “osso”, que pode ser lido em qualquer direção, já revela isso: o âmago, o osso da linguagem, movimento que Guttilla realiza à maneira de José Paulo Paes, de quem toma a epígrafe para seu livro. Contudo, o conciso e o epigramático indicados por Paes não se revelam também em todos os poemas escolhidos para essa coletânea, para felicidade do leitor, que tem diante dos olhos poemas livres, quadras rimadas em redondilhas maiores, sonetos decassílabos rimados, poemas em prosa, visuais, dísticos e haicais, como menciona Ricardo Vieira Lima em seu prefácio. E não apenas, essa diversidade premia o leitor com os mais variados estados de espírito, da melancolia ao humor, e as mais inventivas formas de se colocar a palavra no papel.
Na parte intitulada crânio, Guttilla faz um exercício de meta-poesia, em poemas concretos que refletem sobre o próprio ofício da poesia, com resultados de deliciosa sonoridade. O poeta flerta com a música, à maneira de Leminski, ao apresentar a si próprio: “sou leitor/ que deixa vestígios/ ossos/ calcinados/ nas margens/ dos livros”. Aparece nesse poema um outro sentido para “osso” como os restos, aquilo que fica, depois que se saboreia o prato. E é entre essas duas vertentes que o livro oscila, sem perder a elegância: a leveza do transitório, daquilo que não pareceria constituir motivo suficiente para o poeta se debruçar sobre o papel (mas por que não, se tudo pode e deve ser matéria para a poesia?), e a densidade do essencial. Esse jogo entre o leve e o essencial transparece no poema de caso com Cacaso: “não sou poeta/ de muito/ não sou poeta/ de pouco/ não sou poeta/ tampouco/ de muito/ querer o pouco/ de pouco/ querer o muito”. Nessa parte do livro, inclusive, brinca com a forma das palavras, explora os aspectos sonoros e visuais dos poemas, que podem ser apresentados em forma de menu ou com as letras em volumetria tridimensional.
O poeta procura relacionar a estrutura ao conteúdo, mas explora também aspectos sonoros, valendo-se de aliterações, assonâncias e paronomásias, com resultados que lembram a trovadoresca medieval, como em Peão de carrossel, dedicado a Decio Pignatari, e nos haicais sempre bem-humorados: “mediu a vida/ em colherinhas de café/ o defunto assina e dá fé”. Mas é no poema intitulado Il miglior fabro que alcança seu mais alto grau, como aponta Ricardo Vieira Lima. Nesse poema em que a disposição das palavras forma cruzes, ressalta, na vertical, a frase “fa core”, em italiano: “faz o essencial”, como um credo a ser seguido pelo “melhor artesão”, que o poeta almeja se tornar. Na horizontal, o verbo descozer, o qual parece apontar mais para o significado de “descoser”, com “s”: descosturar, desmanchar, pois o poeta grafa algumas sílabas para formar uma gangorra entre “fazer” e “desfazer”. “Desse modo”, conclui Vieira Lima, “o sujeito poético parece nos dizer que ‘o melhor artesão’ é aquele que ‘carrega a cruz’ de fazer o que é essencial, ainda que, para isso, tenha que se reinventar o tempo todo, fazendo e desfazendo o que já havia sido feito, e bem-feito”.
Melancolia
Na segunda parte do livro, dedicada às vértebras, ou seja, a coluna dorsal do livro, o eu lírico se permite brincar com a ideia de “Deus”, sempre com a melancolia reluzindo, sutil, sob o manto de humor: “acho que meu Deus anda meio duro/ seu celular está sempre fora de área” e em o elefante na avenida marginal, observado pela criança nas visitas do circo à cidade. Nesse caso, o poeta se remete a Drummond, o eu lírico se identifica com o elefante na vida adulta: “e seguiram enjaulados/ para seus inopinados destinos”. Nessa parte, entre referências ao jazz, blues e chorinho, surgem lampejos de memória da juventude do poeta, entrevistos a partir do conhecimento da vida que ele tem a posteriori, não sem autoironia, o que ressalta no poema Pregão e tempus fugit, além do delicioso falsa balada existencial: “ai, com que gosto eu dormia/ nas aulas de geografia!/ aos confins do mundo eu ia:/ Oropa, França & Bahia”. Esse diálogo do eu de hoje com o de ontem também aparece em outros poemas: “comandado pelo baixo ventre/ você não sabia que o amor/ é somente uma ideia/ e o que se ama é aquilo que não se tem”. E no belo soneto formado por versos alexandrinos: “na espantosa estrada da vida, eu me perdi/ nem sei, ao certo, por que ruas caminhei./ Fui dar em reino em que justeza, lá, não vi./ desgovernado, sem comando e sem rei”.
A terceira seção da obra é nomeada sacro, o osso que fica na base da coluna cervical e, não por acaso, reúne os sonetos dedicados à morte, base dessa nossa existência de seres condicionados ao desaparecimento. A disposição dos parênteses, enfatizada pela separação dos versos, mimetiza a suspensão da vida: “no dia/ em que a indesejada chegar/ acho que irei (/ a não ser que a besta/ revogue sua lei)”. A ironia continua fortemente presente, revelando-se já nesse primeiro poema, em que o poeta fala da própria morte, mas também em duas elegias ao primeiro amigo, dedicado à morte do pai, em que ressalta uma espécie de ternura: “a matéria desceu a escada do sobrado/ carregada por dois pretos fortes/ envolta em uma fronha de linho Santista”. No verso seguinte: “era o que restava de meu pai/ liberto de sua volumosa carcaça/ e da conta da lavanderia”. Essa interrupção abrupta, causada pela morte, nos compromissos prosaicos da vida, também se apresenta no poema o cidadão encontra a iniludível, que fala de alguém apanhado pela morte “trinchando um filé” num restaurante francês: “por fim o cidadão saiu hirto e frio sem pagar a conta/ que por sinal era de pouca monta/ Laus Deo”. E conclui: “Não há surpresa/ disse a Morte/ à sua presa”. Todos os poemas desta seção apontam ironicamente para a ideia de que um corpo morto não passa de uma coisa, um embrulho a ser carregado. Mas é no poema balada dos três gatinhos, que se refere ao parto inesperado de uma gata no sofá da sala, que esse lado abjeto da matéria mais se revela: “essa sujidade toda/ mijo e fezes”. O evento escatológico serve a uma reflexão eivada de ironia sobre a ausência de transcendência: “sendo assim/ — oh, meu Pastor! —/ como não sou crente/ místico ou asceta/ segue a conta do veterinário/ depois a gente acerta”.
A quarta seção do livro é nomeada tarso, o pé dos mamíferos, e congrega poemas um tanto herméticos que se orientam para as referências clássicas e greco-latinas do poeta. Homero é homenageado no primeiro poema o cego, mas também na prosa poética de o demiurgo, o atlante e o embaixador, entre citações que remetem a Dante e a outros poetas. Essa seção dedicada ao pé parece apontar que o pilar da obra do poeta são as suas leituras, o que se revela no repetido refrão de um coro imaginário: “para afastar a dor imiga/ e deslassar a compaixão/ emule a lenda antiga/ desse velho remendão”.
Por fim, a última seção do livro, falanges, dedos das mãos e dos pés, apresenta um conjunto dos excelentes haicais que fizeram o renome de Rodolfo Witzig Guttilla na poesia brasileira contemporânea. Vários são dedicados à observação da natureza, mas sem excesso de lirismo, mesmo quando remetem à interioridade do poeta: “cheiro de capim/ molhado/ e dentro de mim”, mas com a ironia que o caracteriza e, como não podia deixar de ser, neste livro com a estrutura de esqueleto, a morte sempre presente: “a besta chamando/ não sei se vou, se volto/ e quando”.