Homem de papel, oitavo romance de João Almino, é uma paródia do Memorial de Aires, último livro de Machado de Assis. Ele incorpora o protagonista e alguns personagens também presentes em Esaú e Jacó, do mesmo autor, e dá continuidade à história do conselheiro até chegar ao século 21, com uma anta disputando a presidência da República.
Sem metáforas, a anta também é — literalmente — um animal neste livro. Além de ser, é claro, um símbolo nacional. A partir daí, todas as derivações são possíveis. Entre metáforas e muita ironia, o enredo vem e vai na história do Brasil. Paródia combinada à metalinguagem e intertextualidade, pois é um livro escrito por um livro que adota outros livros como referência. Aires, o narrador centenário, se transforma em um homem de papel — também ele, um herói malogrado.
Ainda que o leitor nunca tenha lido Machado de Assis, Homem de papel flui machadianamente do mesmo jeito. O livro é escrito com um tipo de humor também machadiano, irônico e cortante, assim como a escrita é muito próxima deste autor, direta mas carregada de surpresas.
Enredo e temas
Homem de papel conta a história de um livro com todos os dramas capazes de acometer o mais comum dos mortais: o amor, a incerteza do ser, problemas com a própria identidade e com o envelhecimento. Tudo começa com a personagem Flor, uma diplomata que adorava ler “o livro”. Há muitas passagens elucidativas e nostálgicas que parecem ter o objetivo de realmente esclarecer (e criticar) o exercício da diplomacia, o acesso à carreira e as promoções internas, especialmente nas primeiras décadas dos anos 2000.
Em Machado, Aires é conselheiro para dilemas pessoais e dramas morais típicos do século 19, com as transformações ocorridas nos últimos cem anos. Agora, no livro de Almino, ele passa a ser requisitado como uma espécie de terapeuta ou analista. Além dos problemas enfrentados na carreira diplomática de Flor, Aires ouve pacientemente seus relatos de traição conjugal e outras coisas mais íntimas, que as mulheres de Machado talvez não ousassem. Por se tratar de um livro, deve-se considerar que o Aires do Homem de papel é um voyeur discreto e poderoso.
Morador da capital, teve que deixar o Rio de Janeiro ao ser levado para Brasília a contragosto. Nesta cidade, que aparece em vários romances de Almino e é por ele definida como “uma cidade de cruzamentos” e um “Brasil de Brasis”, o livro pode continuar testemunhando a fantástica vida política brasileira.
Do Rio para Brasília, de Flor para Leonor. O livro foi comprado em um sebo por Leonor, que também o tem como um conselheiro, solicitando sua opinião, confessando sentimentos ambíguos e angustiados. Por ser um livro, é incapaz de ver todas a cenas, faltam-lhe pernas e onipresença. Mas sua intuição, vivência e raciocínio lógico são suficientes para deduzir tudo o que se passa. Num tom “modesto” e sarcástico ao mesmo tempo, ele se permite afirmações como: “Isto exatamente eu não vi, mas…”.
Um dos pontos altos do enredo ocorre quando o protagonista sai do livro. Sim, o livro deixa de ser livro para ser personagem, personagem preso ao próprio livro, que vai desembocar, de fato, na prisão de Aires por causa da anta. Muita inspiração, humor fantástico e fabulação literária.
O narrador-livro filosofa e é um ser intrigado com a natureza humana. Suas páginas trazem uma reflexão constante sobre a vida, as ações mundanas e suas consequências, principalmente as mais absurdas e inesperadas (ou esperadas, mas carregadas de autoengano). Apesar de ser tão velho — e talvez por isso mesmo —, Aires tem um olhar crítico sobre si, sujeito decadente, e a própria decadência do Brasil ao longo de tantas décadas. Ele tenta se atualizar ao máximo, chegando a ter uma presença ativa nas redes sociais, mas tem consciência de ser impossível superar sua condição de sujeito/objeto ultrapassado. Até o Google é capaz de atestar seu declínio: as pesquisas pelo seu nome decresciam ano a ano, tendo caído de 40 mil para 30 mil nos últimos dez anos.
Discursos radicais
Solilóquios e diálogos em meio a narrativas políticas, especialmente as que se referem a dois momentos da história do Brasil que Almino aproxima e compara para destacar similaridades curiosas: de um lado, a abolição da escravatura e fim do Império e, de outro, a instabilidade política e jurídica das primeiras décadas do século 21. A polarização e o ódio estão presentes nos dois contextos, apesar das diferenças temporais, tecnológicas e econômicas.
Como livro e conselheiro, ele se vê obrigado a ouvir (e sobretudo a ponderar) discursos radicais e populistas à direita e à esquerda, semelhantes aos discursos conservadores e liberais que testemunhou no fim do Império, com o embate entre republicanos e monarquistas. Um dos recursos literários usados para aproximar estes dois momentos históricos é a menção a uma passagem do memorial, que faz com que Aires se lembre de que está no Brasil ao ouvir alguém gritando da rua: “Vassoura, vassoura, vassoura…”. Em Homem de papel, a frase análoga é: “Pamonhas, pamonhas, pamonhas”. No final das contas, o país não mudou muito.
Ironia
Almino usa a ironia como estilo literário e motor do enredo. O recurso está na construção dos personagens, nas cenas, nos diálogos, no pensamento enroscado nele mesmo. Nada escapa ao olhar relativista e pessimista do livro-narrador, capaz de radicalizar a ironia até tudo se tornar ridículo ou fantástico, como no caso da anta. Nesta e em outras passagens, observa-se uma tensão permanente entre o que é literal e o que é figurado, levando o leitor a se perguntar sobre o sentido das palavras. Uma vez que a ironia deixa transparecer um sentimento de superioridade, o leitor suspeita de que a autoimagem de flagrante decadência é puro fingimento, um artifício de sedução do protagonista.
Tal como em Machado, o humor reflete uma compreensão filosófica do mundo que ilumina a dimensão comezinha da qual nenhum humano escapa e que induz a cálculos e ações equivocadas. Todos estão perdidos e a vida talvez não faça sentido algum. Mas não se engane, o narrador é um dissimulador profissional. Muita galhofa e escárnio são usados para denunciar, mas sempre reduzindo os riscos de cair nos extremos. Nada de posicionamentos definitivos ou absolutos sobre os fatos, especialmente se capazes de descartar definitivamente a esperança. Homem de papel vai da intuição delirante à ponderação para atingir o ápice de uma crítica resignada.