Da infelicidade

Mario Sabino, o redator-chefe da revista Veja, apresenta sua desilusão de mundo no livro de contos “O antinarciso”
Mario Sabino, autor de “O antinarciso”
01/09/2005

O redator-chefe da revista Veja parece entender que as relações humanas são inviáveis e o mundo, destituído de sentido. Pelo menos é isso o que se constata a partir da leitura de O antinarciso, livro de Mario Sabino, com 12 contos, que acaba de chegar às livrarias de todo Brasil. Seus personagens são seres urbanos enredados em situações em que as possibilidades de felicidade são escassas; pequenas criaturas apresentadas apenas pelo nome (sem sobrenome). Pertencem, em geral, à classe média (alguns, à alta) e sofrem suas existências em meio a dias e noites infelizes.

Na ficção de Mario Sabino as relações, sobretudo a dois, estão condenadas ao fracasso. O final feliz é abolido porque, em alguns casos, desde o início tudo está a ruir. No conto Eliot, por exemplo, o casal Dante e Beatriz é apresentado por meio de uma condenação de infelicidade: “Desamorosamente viviam; desamorosamente morreriam”. Já em Não é bem assim, Marco e Cláudia, apesar de uma suposta atração (construída durante um certo período de relacionamento), se separam — ele não queria casar; para ela o casamento (e o seu desdobramento, a maternidade) representava o objetivo máximo da existência. Mesmo quando o enredo é deslocado no tempo, no caso de Um chapéu ao espelho (ambientado na época de Machado de Assis), a possibilidade de uma relação ser bem-sucedida é nula: o personagem central, Conrado, prefere os chapéus a sua esposa Mariana — ela morrerá tísica e “infeliz com a desatenção do marido”.

A literatura de Mario Sabino desmonta, por exemplo, os sonhos anunciados e prometidos pela propaganda (propaganda esta que, casualmente, ocupa mais de 50% do espaço da revista onde ele, jornalista, atua). No entanto, nos contos de O antinarciso não apenas as relações a dois se revelam malsucedidas. Alguns outros paraísos são destruídos, como a idéia da infância feliz ou do passado idealizado.

O conto Suzana trata do desmoronamento de um tempo até então mitificado. O personagem Marcelo se desloca até o cenário de sua infância, a cidade de Praga, com a finalidade de reencontrar Suzana — a menina por quem fora apaixonado, mais de 30 anos antes. Ele consegue localizá-la, e marca um encontro. Ao vê-la, no entanto, marcada pela passagem do tempo, cai das nuvens:

As palavras que pensara dizer, se já lhe soavam tolas, agora pareciam completamente despropositadas diante da visão que se lhe apresentava. Mas não havia como falar nada, era uma obrigação imposta pelos milhares de quilômetros percorridos, e ele seguiu em frente, cortando detalhes e efusões para que aquilo acabasse depressa. (pág. 97)

Tudo que era lindo, rapidamente, se desmanchou no ar:

    — Você faz o quê?
— Sou médico. E você?
— Sou prostituta.
— … (pág. 99)

Eles se despedem (para nunca mais). Naquela mesma noite Suzana iria morrer. De overdose. De heroína. Marcelo também iria morrer. Algum tempo depois. De câncer. O narrador do conto Suzana pinta o cenário em que Marcelo esteve inserido: “Cinza era a sua vida”. Cinza (também) é o tom do imaginário ficcional de Mario Sabino.

Na ficção sabiniana os personagens apresentam dificuldades para se relacionar não apenas a dois. Em Conto infantil o dilema do protagonista é que ele não consegue dormir com a luz apagada. “Por quê? Porque tenho pavor de que ela apareça, a minha mãe”, confessa o personagem central. Ele sempre odiou a mãe. Morta, também de câncer, a mãe passou a habitar os sonhos dele. O protagonista de Conto infantil procura respostas, e discursa:

Quando digo que ela era uma puta, essa é, mais do que a expressão do meu ódio, a pura verdade. Meu pai morreu quando eu e meu irmão éramos muito pequenos. Deixou um bom dinheiro para a sua pequena família, graças a seu talento de financista e à herança de meus avós, os quais tinham nele o único filho. Daria para termos vivido bem, se a vadia da minha mãe não tivesse torrado tudo com suas megalomanias teatrais. Passou a produzir espetáculos — “espetáculos”, francamente — em que ela só era a protagonista porque entrava com a grana. Com a grana e com o rabo. Estava sempre levando um atorzinho para sua cama, que também deveria receber para comê-la. Como dava o cu, a vagabunda! Enquanto isso, eu e meu irmão tínhamos de nos virar, fazer a própria comida e lavar a própria roupa. Sim, senhora, eu era uma criança que lavava a própria roupa, se quisesse sair limpo. Assim como o coitado do meu irmão, um genuíno filho-da-puta. (pág. 112)

O personagem central de Conto infantil não supera o problema: ele o expõe e reflete a respeito. Isso (discutir o tema, argumentando e questionando), que pode vir a ser interpretado como “verborragia”, está presente não apenas em Conto infantil, mas em outros contos de O antinarciso. É um problema? Ou um defeito? Pelo contrário: pode ser entendido como qualidade — ou um aspecto da proposta literária de Mario Sabino. O autor problematiza a respeito de trajetórias que parecem não ter sentido e, ao mesmo tempo, a narrativa procura, por meio da “verborragia”, encontrar um sentido, uma explicação, uma desculpa até, para a falta de sentido (de tudo).

Da amizade masculina, a exemplo do que o título faz pensar, trata da relação entre dois homens. Mas na ficção de Mario Sabino nenhuma relação prospera — nem mesmo a amizade entre dois universitários que estudam filosofia. A relação deles incomoda os demais. As namoradas não a suportam. E tudo desmorona. Da amizade masculina também traz, assim como outros contos de O antinarciso, uma certa “verborragia”, que, como já foi comentado em parágrafo anterior, tem a finalidade de encontrar um sentido:

É preciso que se diga que pode existir uma amizade feminina entre dois homens, bem como uma amizade masculina entre duas mulheres — e, mais uma vez, isso nada tem a ver com sentimentos homoeróticos. Uma amizade é tão mais masculina quanto mais propensa ao silêncio; e tão mais feminina quanto mais gárrula for. O silêncio da amizade masculina nasce da intimidade. (pág. 17).

Mas, por mais que se busque um sentido, um entendimento, não há resposta, não há sentido.

O universo ficcional criado por Mario Sabino é denso, e um dos raros momentos de leveza está no conto Um beijo entre doish cocosh. A orelha de O antinarciso informa ao leitor que o texto foi escrito por sugestão do livreiro carioca Marcus Gasparian. O mote foi: “um conto sobre o amor de um paulista por uma carioca”. E Um beijo entre doish cocosh é isso mesmo. Um paulista que odeia o Rio de Janeiro se apaixona por uma carioca. E, a partir disso, muda seu ponto de vista a respeito da cidade em que a namorada vive.

E tudo fora uma iluminação, e assim se cristalizara, pelo menos para ele, porque dela já não sabia fazia tempo, desde que haviam se separado, muito anos atrás, já nem lembrava a razão, se é que havia alguma, às vezes é sem razão mesmo que tudo acaba, ou se lembrava e preferia esquecer (pág. 57)

Um beijo entre doish cocosh recupera um breve espaço entre cor e sombra de vida a dois. Mas, como já foi pontuado, no universo ficcional sabiniano os relacionamentos a dois estão condenados ao fracasso. O título do conto se justifica porque é por meio da recriação da oralidade das conversas cariocas que a narrativa evoca um tempo inesquecível para o personagem paulista:

Ou cocosh, doish, como ela costumava pedir no quiosque perto do posto 12, o melhor da orla e o mais caro, naquele chiado que já não irritava, enternecia. Cocosh loucosh, loucosh cocosh, melhoresh que o vinho dosh cânticosh o cântico, sim ao sim, sim ao não, nunca não ao sim, cocosh intercalados por beijos que eram sempre o mesmo único beijo profundo, apaixonado, faminto, sem passaporte, que ele dava com a própria boca e ela, também. Doish. (pág. 57)

Os personagens sabinianos sofrem seus destinos e nada fazem para tentar alterar-lhes a rota ou minimizar suas dores. Uma exceção é o personagem de Wagner e Wagner — o derradeiro conto de O antinarciso. Wagner é um matemático batizado assim em homenagem ao compositor alemão. Ele tinha como meta traduzir em equações as partituras de seu homônimo célebre. Mas Guilhermina, sua esposa, passou a se relacionar com Rafael, um estagiário de Wagner. Então, Wagner se separou da esposa, abandonou o projeto, deixou de ouvir música e tomou uma decisão (irreversível):

Wagner havia deixado de ser apenas Wagner, para transformar-se em música que não era apenas música. Quando se jogou, ele se sentia mais vivo do que nunca. Morreu como alegoria; foi enterrado dentro de um caixão lacrado. (pág. 127)

Wagner é um personagem sabiniano que não suporta a infelicidade, a frustração dos planos, e rompe o processo: se mata, se joga do último andar do prédio mais alto da cidade. Antes da decisão, procura resposta, mas resposta não há; quer sentido, sentido não tem, não. Surta. “De noite, acordava sobressaltado por melodias inexistentes. Durante o dia, era tomado pela obsessão de identificar dodecafonias na cacofonia urbana”.

A ausência de sentido do universo ficcional de Mario Sabino também está presente em um outro conto, diferente de todos os demais. Trata-se de Biografia. Nesta curta peça de ficção, a narrativa se resume em listar as idiossincrasias ou obsessões de ilustres personalidades:

… Machado de Assis fingia não ser negro. Marx era racista e um homem de pouca higiene. (…) Roosevelt era cornudo. (…) Thomas Mann escondida suas inclinações homossexuais. Leonardo Da Vinci também. (…)_ D’Annunzio experimentou o sexo anal na posição passiva, mas não gostou, acho insípido e doloroso. Lewis Carroll era pedófilo. Chaplin preferia as adolescentes e praticava o cunnilingus. (…) Mozart era infantilizado. (…) Hemingway também era depressivo. Virginia Woolf também. (…) Sartre era oportunista. Brecht sujava as unhas para parecer um trabalhador. (págs. 64 e 65)

Até que, ao final, no último instante, uma surpresa:

Um buraco negro, negro como Machado jamais quis ser, negro como aquele lago que se avizinhava cada vez mais, e mais, e mais, e no qual jogaria o corpo que jazia escondido no porta-malas. (pág. 67)

Era a vez e a hora de um personagem, anônimo, desovar um cadáver.

Mario Sabino faz ficção sobre a falta de sentido, mas — é importante ressaltar — com coerência. As narrativas breves de O antinarciso tratam de impasses contemporâneos (o homem buscando sentido em uma existência muitas vezes sem sentido) por meio de uma linguagem contemporânea, que se quer clara e compreensível.

Nas entrelinhas, as narrativas insinuam que o narcisismo é responsável por piorar ainda mais a tragédia (e a comédia) humana. E a menção ao narcisismo inicia na capa do livro, que procura simular um espelho, prateado metálico, que reflete de maneira turva e desfocada o rosto do leitor (projeto gráfico de Evelyn Grumach).

O antinarciso não se irmana com nenhum outro livro de contos da literatura brasileira contemporânea. E, por isso mesmo, se destaca dentro da malha literária brasileira contemporânea.

(P.S.: O conto Suzana, de Mario Sabino, pode fazer parte de A antologia de contos da literatura brasileira — que ainda não foi, mas deve ser editada — ao lado de obras-primas como Quinze minutos, de Newton Sampaio; Uma vela para Dario, de Dalton Trevisan; A flor de Girokastra, de Fábio Campana; O encalhe dos trezentos, de Domingos Pellegrini; Em busca de Rostropovich, de Jamil Snege; O herdeiro, de Miguel Sanches Neto; Para salvar Beth, de Amilcar Bettega Barbosa, Martelo de Thor, de Paulo Sandrini; e Dançar tango em Porto Alegre, de Sergio Faraco.)

LEIA ENTREVISTA COM MARIO SABINO

O antinarciso
Mario Sabino
127 págs.
Record
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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