O resenhista fica sem chão. O resenhista lê. O resenhista avança. Página 11. Página 12. Página 13. Páginas. Páginas. Páginas. Página 32. O resenhista tem a impressão de que desta vez vai ser muito difícil escrever algo. O resenhista cogita até telefonar para o editor e dizer que, pela primeira vez, não vai conseguir entregar o texto.
A avó foi linda, a filha idem e a neta que será também como a avó e a mãe, idem: vão todas ficar iguais: velhas, enrugadas, chochas, idiotas, zarolhas, torpes, jenipapos murchos, dêem tempo a tempo.
O resenhista faz resenhas desde a edição número 1 do Rascunho. Já faz tempo. Quase sete anos. Até este momento, novembro de 2006, ainda não havia aparecido um livro tão indecifrável quanto Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre, de Ricardo Guilherme Dicke. O resenhista lê. O resenhista tem dificuldade para traduzir o que tem nas mãos. Mas o resenhista segue.
— Vocês sabiam que o galo canta 33 vezes da meia-noite para trás até as 6 horas amiudando?
O resenhista deixa o livro de lado. Por uns dias. O resenhista se questiona. O resenhista não quer acreditar que falhou. O resenhista quase decreta: “fracassei”. O resenhista não quer admitir, mas, pelo jeito, este mês não terá resenha. O resenhista abre o livro, aleatoriamente:
Este país, este mundo está cheio de gente desesperada, gente que está procurando a morte e gente que mata — e a gente tem de ser conivente, quer se queira ou não se queira, e se calar no seu silêncio feito de raiva, insatisfação e incomunicabilidade.
O resenhista é procurado pelo livro. O resenhista insiste em ler, reler Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre. O resenhista apela. O resenhista quer saber o que alguns intelectuais já disseram a respeito da ficção de Ricardo Guilherme Dicke. O resenhista se informa.
Hélio Pólvora já se pronunciou sobre a ficção de Dicke: “Há uma prosa de ficção certinha, correta, bem administrada e que, no entanto, não nos comove. É fria, foi escrita sem alma. E há outra bravia, excessiva, barroca, com um poder quase mágico de nos tocar e arrastar de imediato”.
Leo Gilson Ribeiro também: “É uma erupção viva, uma chaga aberta, é um grito de vitalidade do que existe de mais contemporâneo na literatura brasileira: a que se integra nas renovações artísticas do seu tempo e indica uma segura individualidade pioneira”.
O resenhista encontra outros depoimentos, de outros críticos, leitores, autores, a respeito da literatura de Ricardo Guilherme Dicke. O resenhista tem a convicção de que o estranhamento inicial sacudiu todas as possíveis certezas, as supostas previsibilidades e todo um olhar a respeito de como a ficção vem sendo produzida no Brasil, no mundo. O resenhista sabe de que depois deste livro, nada mais, para ele, resenhista, será igual.
— Fabulosos, rodopiantes mundos da ilusão!
Pra que tanta notícia?
Toada do esquecido é um conto — ou uma novela?. Toada do esquecido é um texto de ficção, relativamente, longo. Toada do esquecido tem início na página 11 e segue até a página 133. Toada do esquecido se dá muito mais pela fluência da narrativa do que pelo enredo. Toada do esquecido traz, em meio às vozes, uma voz, ou mais de uma, que pontua o excesso de ruídos deste mundo.
Liga o rádio. Dial: pastor protestante falando sobre a impossibilidade de o homem salvar-se longe de sua igreja, soviético em espanhol estilo metálico El Salvador, alemão falando sobre Guttemberg, albanês falando em espanhol sobre as excelências de Tirana, bolo indefinível de interferências misturadas, estação brasileira emitindo música americana e chata, a batidinha enjoativa, mulher glamourosa falando em russo, bolo e interferência de novo […]
Toada do esquecido apresenta personagens em movimento. Toada do esquecido traz personagens a se comunicar. Toada do esquecido problematiza o excesso de ruídos deste mundo.
Notícias, notícias, notícias, o mundo necessita muito de notícias.
Toada do esquecido traz notícias de um mundo, de um Brasil, que o próprio Brasil desconhece ou prefere esquecer. Toada do esquecido é um grito — ou um silêncio — diante dos ruídos deste mundo.
— A gente vive no mundo da sedução: revistas e jornais repletos de insinuações, televisão com mulheres convidando, assim tão sem mais nem menos; pelas ruas elas andam nuas, nas rádios vozes ciciantes que sussurram no mundo da sedução, de manhã à noite e da noite à manhã: vozes que cantam irresistivelmente, envolventemente a não poder mais: este é o mundo da sedução e da ilusão em que vivemos metidos até o pescoço […].
Toada do esquecido sintoniza emissoras de rádio. Toada do esquecido sintoniza a Rádio Buenos Aires, a Rádio Nacional da Espanha, a Rádio France, a Rádio Praga, a BBC de Londres, a Rádio Moscou. Toada do esquecido sintoniza a Rádio Brasil Profundo. Toada do esquecido sintoniza a Rádio Reflexão. Toada do esquecido sintoniza os ruídos deste mundo.
Palavras que parecem ocas, vazias, indiferentes, sem significado, parecem que não querem dizer absolutamente nada: e quem as fala? A quem interessam? Quem as diz? Que as imaginou? Quem as criou e as botou no mundo como um ovo de galinha? E para que, por acaso, com que secreta finalidade?
Toada do esquecido não deixa de perguntar. Toada do esquecido é um questionamento. Toada do esquecido não se conforma com os ruídos excessivos deste mundo.
— Por que será que eles, os homens, gostam tanto de notícias?
— Pois é, essa mania de enterrar o mundo sob notícias…
— Notícias, notícias: talvez a mola do mundo…
— Merda, mola do mundo.
Ouro de tolo
Os personagens de Toada do esquecido fazem uma travessia. Os personagens de Toada do esquecido são marginais e não têm a seu favor polícia, traficantes, missionários, garimpeiros — toda a sórdida e eterna engrenagem. Os personagens de Toada do esquecido estão num ponto qualquer de um Grande Sertão: Brasileiro. Os personagens de Toada do esquecido carregam ouro. Um deles sonha:
Mas, que iria eu fazer com meu ouro? Nunca pensei nisso. Vou viajar, viajar pelo mundo, e comprar uma casa enorme em Sidney, na Austrália, bem longe, quanto mais longe melhor, e adquirir ações na bolsa, comprar cavalos, e vou formar um haras, vou jogar em cavalos e ter a maior plantação de marijuana do mundo, vou fazer meu dinheiro render em dobro, em triplo.
Os personagens de Toada do esquecido seguem como seguiu aquele Cavaleiro da Triste Figura. Os personagens de Toada do esquecido ambicionam grandes aventuras mas o presente é muito outro e inclui coletiva diarréia fruto de carne de porco mal assada. Os personagens de Toada do esquecido se movem e refletem que a vida passa e parece não deixar rastros neste areial chamado destino. Os personagens de Toada do esquecido têm noção de que não se passa duas vezes no mesmo rio, no mesmo livro, na mesma estrada. Um outro personagem de Toada do esquecido supõe que não precisa invejar os ricos, uma vez que há ouro na bagagem e planeja o porvir:
Eu compraria todos os livros, quadros e discos do mundo, retirar-me-ia para uma cidade que se deitasse sobre campos floridos, na maravilhosa Espanha, num castelo de Burgos ou Mérida, que fosse perto também do mar, Barcelona ou Costa Brava, renunciaria às pompas do mundo a escutar eternamente música e a ler todas as obras literárias do mundo, com professores dignos de línguas, reuniria a maior biblioteca do mundo, a maior discoteca do mundo e a maior pinacoteca do mundo, e naquele silêncio ante os campos floridos e diante do mar adentraria todos os segredos..
Os personagens de Toada do esquecido tiveram o sonho interrompido: o ouro vazou por um furo no saco e a tragédia os esperava logo ali, no desfecho do texto.
Indecifrável, múltiplo
O leitor do Rascunho pode protestar — e até enviar um e-mail para a redação — alegando que o resenhista não analisou os personagens de Toada do esquecido. O leitor do Rascunho, se vier a ler Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre, então, talvez encontre na Nota dos Editores a observação: “a grande personagem é o narrador. As personagens enigmáticas assim o são, porque o narrador é a esfinge que o leitor precisa devorar. O narrador, os narradores, ou as personagens-narradoras — talvez nunca saberemos — tecem a trama para captar o leitor”. (E é isso mesmo). O leitor do Rascunho, se realmente tiver acesso a este livro de Ricardo Guilherme Dicke, vai admitir que a obra é muito, mas realmente muito mais ampla e complexa do que tudo aquilo que o resenhista conseguiu ler.
O leitor do Rascunho vai encontrar em Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre uma literatura que traz ecos da tradição literária de todos os tempos. O leitor do Rascunho vai perceber em Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre uma refinada recriação da oralidade. O leitor do Rascunho vai constatar que Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre trata do impasse humano diante do destino, do imponderável, da impossibilidade de vir a se comunicar. O leitor do Rascunho vai se dar conta de que Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre traz dois contos, Toada do esquecido e Sinfonia eqüestre, e que o resenhista comentou apenas o primeiro e não emitiu nenhuma observação a respeito do segundo. O leitor do Rascunho vai, ainda, se divertir com Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre, sobretudo, com as doses de humor e ironia, por exemplo, num fragmento da página 37:
Para onde se vão os sonos, Deus meu? Para o céu dos sonos, e ele fica lembrando-se de sua vida, quando por exemplo queimou todas as obras completas de J. G. R., para que queimou? Não o sabe, só sabe que as queimou, pegou todos os sabonetes que havia comprado em enorme quantidade das casas de umbanda da cidade, os discos de umbanda e todos os apetrechos da dita umbanda, mais as obras de J. G. R. e pôs tudo dentro de um tanque, derramou gasolina e jogou um fósforo aceso, foi aquele fogo bonito que durou toda a tarde, porque o tanque estava até as bordas.
O leitor do Rascunho deve se deparar com diversos outros elementos em Toada do esquecido & Sinfonia eqüestre: crítica ao rock — e tudo que a batidinha enjoativa representa, musicalidade em todas as frases do livro, ritmo alucinante a conduzir o enredo, sensação de que não há e ao mesmo tempo há enredo e, quem sabe, a impressão de que está diante de uma literatura indecifrável e irresistível.
É trágica a verdadeira condição do homem: fechado em si mesmo incomunicavelmente.