Da arte de ser promissor

Flávio Izhaki, apontado como uma das promessas da nova geração, estréia como romancista com “De cabeça baixa”
Flávio Izhaki, autor de “De cabeça baixa”
01/07/2008

De cabeça baixa é um romance que revela a desilusão de um jovem aspirante a escritor que publica o seu primeiro romance e se frustra com o resultado. De cabeça baixa também é o romance de estréia do jovem escritor carioca Flávio Izhaki, 29 anos. De cabeça baixa apresenta texto bem escrito e fluente e, se não é uma obra-prima, pode conduzir o eventual leitor da página 3 até a 186 em poucas horas de agradável leitura (ou minutos, se o eventual leitor tiver tempo livre, experiência e agilidade na leitura).

Não sei se os leitores do Rascunho estão informados, mas Curitiba é território em que surgem e se multiplicam (e não desaparecem) sujeitos que desejam ser escritores, sobretudo poetas. A cidade elegeu um superestimado poeta na década de 1980 e nem é preciso citar o nome porque já se fala demais do indivíduo, falecido, por aqui. O poeta-modelo inspira demais jovens ávidos pelo título de poeta: muitos ambicionam ser iguais ao ídolo e, além de ser poeta — a exemplo do mestre, atuar na publicidade, compor letras de música, realizar traduções — a aura-multimídia, enfim, contamina os “aspiras”.

Felipe Laranjeiras é o protagonista do romance De cabeça baixa. Um superestimado jovem que há muito anunciava estar escrevendo o primeiro romance, até que publica Desencanto. A obra não vinga. Ganha uma única (e negativa) resenha. O personagem, também abandonado pela namorada, deixa o Rio de Janeiro e passa uma temporada em Curitiba. A narrativa, em terceira pessoa, traz observações clichês sobre as duas cidades, seja a respeito do frio, garoa e introspecção curitibanos como sobre a falsa simpatia dos cariocas que convidam para tomar um café lá em casa, contanto que o convidado nunca apareça.

De imitação em imitação, de diluição em diluição, os “aspiras” a poetas curitibanos formam, a cada dia que nasce, um batalhão de epígonos do superestimado poeta endeusado na década de 1980. E as tentativas de mimese vão, por exemplo, do uso do bigode ao hábito de pensar por trocadilhos e ser, enfim, um trocadilho. Há os que, além de supostos poetas, se apresentam como tradutores — apesar de nem saber escrever em português. Outras caricaturas repetem slogans que o mestre enunciou na já longínqua década de 1980. O ícone deixou viúvas, a maioria marmanjos que pegam no tacape e nas flechas quando alguém ousa criticar o poeta que, na realidade, não passa de pseudopoeta.

A odisséia do protagonista do romance De cabeça baixa se deflagra no momento em que, em meio a um sebo curitibano, ele encontra um exemplar de seu livro. Há anotações nas margens. São observações críticas. A partir disto, Felipe Laranjeiras — já em crise — se afunda em inquietações. E, perturbado, não sossegará até encontrar a pessoa que escreveu aquelas anotações. “A sua vida sempre fora mais de nãos do que de sins até aquele momento.” Eis um trecho da narrativa sobre o personagem no espaço-tempo em que ele decide localizar Ana Maria, a autora dos comentários.

Há vários sujeitos, projetos de escritores, em Curitiba que, de alguma maneira, se parecem com o personagem Felipe Laranjeiras, protagonista do romance De cabeça baixa. São, sobretudo, jovens. Alguns já estão na melhor idade mas se consideram jovens. São, enfim, adolescentes mentais, adulteens. Todos promissores. Pelo fato de terem sido alfabetizados, se consideram aptos a realizar a próxima Ilíada. Em bares, declamam poemas em alta voz, emitindo, acima de tudo, perdigotos. Escrevem em guardanapos. Depois de alguns goles de destilados e/ou fermentados, são vítimas de logorréia. E, em geral (e acima de tudo), cultuam o pseudopoeta máximo de Curitiba, a fraude tremenda dos anos 1980.

Felipe Laranjeiras, depois de uns tempos em Curitiba, retorna ao Rio de Janeiro. E o regresso do personagem à cidade natal é, possivelmente, o ponto alto do romance De cabeça baixa. “A beleza da cidade escapa aos cariocas acostumados aos morros ainda verdes (…)”. A narrativa mostra que o protagonista, ao regressar à cidade onde nasceu e cresceu, depois de alguma ausência e distanciamento, consegue enxergar e perceber nuances e detalhes que anteriormente eram invisíveis para ele. Felipe tem, então, de enfrentar a cidade onde, em outro passado, habitava e convivia com a ex-namorada Luana. Mas ele está de volta ao Rio para encontrar Ana Maria, a autora das anotações perturbadoras, para ele, feitas em um exemplar de seu livro Desencanto.

Os filhotes, clones, viúvos, epígonos enfim, do pseudopoeta que Curitiba endeusou na década de 1980 são, de uma maneira geral, ignorados na capital do Paraná. E, como precisam ocupar o espaço, para eles, perdido, buscam palanques. O principal palco de discursos e performances dos epígonos do pseudogênio da poesia curitibana dos anos 1980 está na internet. Nos blogs. Ali (lá), publicam poemas, traduções, sacadas, trocadilhos e praticam a ação entre amigos: só vale elogiar. Elogio próprio pode. Elogio de amigo também pode. Crítica não pode. E, de janela em janela virtual, são produzidas milhares de palavras, amontoados de frases. Produção em ritmo industrial. Decantar? Gaveta? Que nada. Os pop stars anônimos, e sem público, precisam exibir as suas amostras grátis de diluição do pseudopoeta curitibano da década de 1980.

O protagonista do romance De cabeça baixa não consegue encontrar fisicamente Ana Maria, mas terá acesso a algumas outras anotações que ela fez. Ana Maria escreveu uma narrativa em que o personagem central, Marcelo Lima, é inspirado em Felipe Laranjeiras. E, ao ler o conteúdo, o escritor que se tornou personagem despencará em outro abismo existencial. “Agora era ele no papel de personagem, em tintas fortes de prostração, Felipe Laranjeiras e Marcelo Lima como duplos, uma vida dividida e subtraída em duas”. Felipe, triste, fica (então) tristinho, tristíssimo.

Os promissores jovens escribas curitibanos se irmanam com Felipe Laranjeiras, justa e exatamente, pelo fato de que todos eles são jovens — e raramente existe um jovem genial (existe “gênio”?). Há expectativas demais em relação ao primeiro livro, e um primeiro livro de um jovem se fragiliza — acima de tudo — pela falta de experiência, de vida (do jovem), sobretudo de leitura (do jovem). Os Rimbauds curitibanos (brasileiros, mundiais) são ávidos por apresentar as suas produções, mas o que esses sujeitos lêem? Um detalhe interessante a respeito dos jovens pseudopoetas de Curitiba, que admiram o pseudopoeta endeusado na década de 1980, é que, em geral, eles não conhecem prosa, nada de ler romances nem conto. Quando lêem, se é que lêem, farejam apenas textos poéticos, principalmente pseudopoéticos (pop-cretos), e isso é pouco, ou quase nada, para quem pretende caminhar numa estrada que se chama literatura.

Em seu blog, o jovem escritor carioca Flávio Izhaki — apontado por um júri convocado pelo jornal O Globo como aposta literária da nova geração — postou uma mensagem comentando que De cabeça baixa ainda não havia recebido nenhuma crítica negativa. O jovem autor, a exemplo do provável alter-ego Felipe Laranjeiras, talvez tema restrições. Possivelmente, não venha a gostar deste texto. Mas, caro Felipe, ou melhor, caríssimo Flávio, pra que temer uma crítica ou resenha? Resenhas e críticas não passam de pontos de vista, opiniões (achismo, se preferir). A trajetória do romance De cabeça baixa independe de um comentário como este. E, para sua informação, o exemplar que li para fazer esta resenha já vendi num sebo curitibano por menos de dois dinheiros — e há inúmeras observações nas margens, escritas a lápis, parecidas com as que Ana Maria fez no livro de Felipe Laranjeiras.

De cabeça baixa
Flávio Izhaki
Guarda-chuva
186 págs.
Flávio Izhaki
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 1979. Debutou precocemente como contista. Assina a co-organização e atua como contista no livro Prosas cariocas — Uma nova cartografia do Rio de Janeiro (2004). Está presente nas antologias Paralelos — 17 contos da nova literatura brasileira (2004) e Contos sobre tela (2005). Mostra seus contos, também, em revistas impressas e eletrônicas.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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