Rascunho é o jornal literário mais aberto à polêmica existente no Brasil. Está certo que não existem muitos jornais literários na tropicália desvairada. Mas isso não lhe diminui o mérito: gostar de polêmica. Como, na edição anterior a esta, fui generosamente metralhado pelo atirador maluco, também desconhecido por Paulo Hecker (Um caso excepcional, p. 10), achei que podia contribuir com uma nota de rodapé para as polêmicas deste “destemido” veículo de uma categoria em extinção, a do jornalismo cultural especializado em literatura. Eu preferia escrever para mostrar que Marcelo Mirisola é o melhor escritor brasileiro da atualidade, mas vou cuidar das minhas próprias mazelas. Afinal, o lombo é meu e está sovado.
Esta é uma briga de cachorros pequenos. Sou um tipo de sorte: tenho muitos críticos. Falam mal de mim. Mas falam sempre de mim. Nunca serei esquecido. Pena que sejam gaúchos. Sem expressão nacional. Muitos são amigos entre eles: Paulo Hecker Filho, Paulo Bentancur, Ernani Ssó e, noutra linha, Kathrin Rosenfield. Sempre que publico algo (e publico bastante), um deles escala-se para me desancar. Agradeço por tanta dedicação. Paulo Hecker é o guru de parte desse malódromo, desses autores de “malodramas”. Na juventude, pensou em ser poeta ou crítico literário. Fez odes a caixas de supermercado e azedou antes de amadurecer. Vive agora da sua falta de passado e da impossibilidade de futuro. Nunca soube se ele era um caso de demência tardia ou de senilidade precoce. Com certeza, sempre foi um caso degenerativo de “encéfalo esponjoso”, agravado pela secreção de má poesia.
Ao me atacar, Hecker faz autocrítica. Na vida cultural, fez tudo. E tudo mal. No ensaio, não passou da tentativa; cometeu um livro, intitulado “Um tema crucial”, que se revelou fútil e descartável; na poesia, defecou milhares de páginas, das quais não sobra uma estrofe; no jornalismo, praticado com obsessão, ficou a marca do diletantismo e da mediocridade; na crítica, trabalho de uma existência, resta algo: o rancor e a inveja. De tudo e de todos. Quando eu era jornalista, Paulo Hecker já era conhecido por mendigar espaço para cartinhas que arrancava de escritores famosos, proprietários de vastos espaços de mídia, que escreviam maravilhas privadas sobre os seus livros, mas não publicavam por conta própria uma linha do que diziam. Gente sabida!
Eu mesmo, de pena, já menti bastante sobre Paulo Hecker. Em dedicatórias nos meus livros, arrepiado de vê-lo aparecer como um cusco sacudindo o rabo, implorando um carinho e um centavo de reconhecimento, e em entrevistas para pequenos jornais de amigos seus, afirmei que ele era o maior crítico, o mais culto, o mais coerente. Tudo balela. Pobre Hecker, ancião triste e solitário, cercado pelos livros que publicou (três ou quatro de cada vez) e pagou do próprio bolso. Hecker ganhou um grande prêmio literário: o rei do encalhe.
Mas tem discípulos. Ernani Ssó abandonou o jornalismo, sem nunca ter sido jornalista, para ser escritor, o que ainda não foi. Publicou um romance, “O sempre lembrado”, que foi imediatamente esquecido. Paulo Bentancur é um autor estrategista: se for conveniente, esquece o nome das editoras que o publicam para agradar a mídia que lhe oferece sobras de página. Escreveu um livro de contos, chamado “Frio”, que era para ser muito quente, mas não iludiu ninguém. Faltaram as instruções de leitura e a obra-prima esfria no depósito, esquentando o ressentimento do gênio anônimo. Seus mestres são Hecker e Ssó. Que fria solidão! A crítica mais contundente que Hecker e Bentancur sempre me fazem é de que sou inteligente. Nada posso fazer contra a minha a natureza. Sinto muito. As suas opiniões sobre textos acadêmicos são tão ingênuas que se percebe logo o autodidata fracassado.
Paulo Hecker e Paulo Bentancur, quando eu era jornalista, rotulavam meu estilo literário de jornalístico. Agora, que sou professor, consideram-no professoral. Criativo. Engenhoso. Hecker atacou minha tradução de Charles Baudelaire. Nada mais previsível. Destacou alguns pontos. Achou ridículo eu ter traduzido, em busca da rima, “essência divina”, por “essência inerme”. É verdade. Troquei uma redundância ou clichê, que Baudelaire também os tinha, por uma solução radical e inusitada. Inerme quer dizer o que não pode errar, infalível, “divino”. Dicionário nele! Paulo Hecker é inerme. Pelo avesso. É incapaz de acertar.
Mais grave, no célebre poema “A uma passante”, que Hecker também já traduziu, embora o seu francês não dê nem para comprar presunto gordo, ele me acusa de ter trocado “uma fina psicologia por um erro gramatical”, em “ó tu que eu teria amado/ ó tu que não ousou”. De fato. O erro gramatical, consciente, é mais eficiente para a tradução do que uma fina psicologia que até Paulo Hecker compreende. Além disso, em “ó tu que não ousou” está implícito que “ela” sabia. Não posso exigir de um crítico inerme que entenda isso.
No erro gramatical, busquei uma quebra do automatismo da percepção. Hecker é formalista deformado e só vê poesia na dificuldade, no adensamento da palavra, até no hermetismo. Mas a sua pseudopoesia é tão chata por uma razão mais simples: falta de talento. Sou mais formalista ainda. Formalista kafkiano. O hermetismo tornou-se o próprio automatismo perceptivo em poesia. Não choca ninguém. Não distancia. Afasta. À maneira de Kakfa, é preciso inverter o procedimento e buscar na linguagem familiar o choque perceptivo. Kafka narrou o horror como se fosse banal. A poesia precisa banalizar-se. Paulo Hecker já nasceu banal. Nunca teve nada para dizer. Então, passou a vida escrevendo. Pura terapia ocupacional. Nada que lhe aplacasse a tristeza.
Traduzo “amours décomposés” por amor em decomposição. Hecker queria o óbvio: desfigurados, desfeitos etc. Escolhi o aspecto do apodrecimento do amor, levando ao extremo à ambigüidade da palavra. Enfim, Hecker achou grotesco que eu tenha transformado, “Comme un navire qui s’éveille/ Au vent du matin,/ Mon âme rêveuse appareille/ Pour un ciel lointain”, em “Como um navio que se espelha/ No vento do novo dia,/ Minha alma sonhadora aparelha/ Para um céu de utopia”. É verdade. Em meu prefácio à tradução, adverti que faria de tudo, adulteraria, inventaria, transcriaria e traduziria. Neste caso, traduzi um sentido de utopia caro ao século 19 e com ecos terríveis no século 20. Atingi meu objetivo: chocar os piores leitores de Baudelaire, os maus poetas e os péssimos críticos, como o imbatível Paulo Hecker, o único a ser tudo isso ao mesmo tempo e por várias décadas de ofídio.
Kathrin Rosenfield, cosmopolita provinciana, especialista em tornar Guimarães Rosa incompreensível, já me criticou por ter escrito um romance “blindado contra a crítica”, ou seja, que não lhe facilitava o trabalho de me esculhambar. Tratei de não repetir o erro. Depois, criticou-me por, em “O Bonde”, de Claude Simon, ter conjugado corretamente a voz passiva em português, o que para ela soou como um erro de tradução. Não posso desperdiçar inimigos como esses. São raros e fiéis, embora um tanto esquisitos. Acato o que dizem. Com crítico literário não se discute… A caravana passa… Descansa em paz, Paulo Hecker! Serás, em amargura e ressentimento, sempre o número um. As traças nunca esquecerão o teu generoso, embora ecologicamente nefasto, papel.