O senso comum costuma acreditar que o caminho mais fácil para a literatura é o da narrativa curta, o conto. Tal consideração se deve ao fato de que existe a idéia pouco sofisticada sobre a relação entre fôlego e profundidade das narrativas. Explica-se. Escritores ainda em formação imaginam que os contos demandam menos intensidade e desempenho exatamente pela sua extensão, enquanto nos romances ou mesmo nas novelas o tamanho é determinante para adequar-se ao gênero. Por isso, muitos autores, que sequer estão qualificados para conceber esse tipo de narrativa, investem nos contos por imaginarem essa modalidade textual como uma espécie de rito de passagem para a “grande arte”, que é o romance. O resultado? Livros que carecem de estrutura narrativa adequada, tornando a leitura, enfim, algo maçante, quando deveria ser instigante.
E talvez instigante seja a palavra que melhor defina os contos de Cavala, assinados por Sérgio Tavares. Autor estreante, Tavares foi o vencedor do prêmio Sesc de Literatura de 2009. Nos textos de apresentação, chama a atenção a generosidade, que alguém poderá considerar demasiada, dos prefaciadores. De um lado, o jornalista cultural Ubiratan Brasil elogia a contundência das palavras, capaz de tragar o leitor para outro universo. De outro lado, na contracapa, a escritora Heloísa Seixas aponta que Tavares consegue, como poucos, se sair bem do desafio que é encontrar uma nova voz, libertando-se de si próprio. Com efeito, é impactante o texto que abre a seleta e, não por acaso, dá título ao livro. O conto Cavala leva ao universo particular e excessivamente subjetivo da jovem modelo bulímica que convulsivamente — não há outra palavra que se encaixe melhor — despeja um turbilhão de emoções, sentimentos, desatinos, pensamentos, opiniões e dramas para o leitor — o qual, sem sucesso, tenta escapar da sensação de asfixia e sufocamento. O insucesso se dá especificamente porque, de tão forte, a tensão acaba por causar algum prazer, por mais bizarro que soe essa consideração.
Cavala é o texto que absorve mais da metade do livro. Tem-se a personagem central, narradora da história, que não apenas assume a dianteira ao contar suas obsessões, mas também porque, em virtude de tamanha dramaticidade, transforma em cúmplice aquele que é envolvido pela história. Existem algumas hipóteses que poderiam explicar tal fenômeno, como o fato de que, por se tratar de um texto ancorado no discurso da narradora, o leitor acaba por ser o grande interlocutor, o outro a quem o texto se direciona. É possível, além disso, que a narradora esteja em estado de prostração, a ponto, inclusive, de considerar a confissão sua única saída; não se descarta, ademais, a tendência autodestrutiva de quem só consegue enxergar a si mesma e que, não contente com essa condição, pretenda levar para o buraco aqueles que, a um só tempo, se compadecem e se enervam com o texto. Se, por um lado, nenhuma dessas hipóteses revela a intenção da narradora, também é correto afirmar que não podem ser deixadas de lado sem um exame mais detalhado.
Em verdade, as marcas que definem a consistência da história estão assinaladas nas entrelinhas, mais do que nas impressões que o conto eventualmente provoque nos intermináveis descaminhos da interpretação literária. Em outras palavras, é como se o texto, de fato, fosse tão vigoroso e denso, que é impossível atravessar sua leitura sem mesmo sentir-se incomodado com o que se leu, para o bem ou para o mal. Chama a atenção, nesse quesito, nem tanto as descrições, mas, sim, a retórica da narradora, o que concede um status de “verdadeiro” ao que, em tese, se apresenta como “falso”. Aqui, não sem razão, alguém poderá dizer que esse debate em torno da verossimilhança já está superado pela teoria da literatura. Mas a “culpa”, nesse caso, é do texto de Sérgio Tavares, que novamente traz à baila esse debate. Com isso, em certa medida, é como se o texto enunciado pela narradora tivesse sido previamente preparado entre o discurso poético e o discurso a ser proclamado, em público. De um modo ou de outro, a voz da narradora em Cavala revela um autor que é original sem ser afetado; interessante sem precisar apelar; talentoso sem querer aparecer.
Os outros
Embora insinuantes, os demais textos de Cavala não são tão insinuantes quanto a história que abre o livro. Nesse caso, os textos devolvem o leitor à zona de conforto das narrativas curtas, o que não necessariamente é algo ruim. Pelo contrário. Tem-se a oportunidade de observar o autor estabelecendo formas breves mais tradicionais, com os previsíveis desfechos que surpreendem o leitor. Ok, a aparente contradição norteia os contos de um modo geral, e não é mesmo impossível enxergar nas narrativas curtas certo apelo às estruturas mais tradicionais, com o fim retomando um conflito ou mesmo uma revelação inicial; ou, ainda, com duas histórias caminhando em paralelo. De sua parte, como autor que mais sugere do que revela, Tavares investe na mesma (?) voz feminina do primeiro conto. Só que em Fome ele opta por mostrar o relato de alguém que está embevecido pelo desejo carnal. É da fome pelo sexo que a narradora-protagonista se declara dependente, já no início do texto, remoendo em voz alta sua angústia:
sou fraca, e a repetição do erro suscita lamentos futuros que fazem com que a decência remanescente tente abandonar essa carcaça usada como instrumento de satisfação, depois descartada para preservar as digitais.
Já em Sobre a pélvis, há uma mudança. A voz do narrador, agora, é diferente. E o autor, em vez da verborragia dos textos anteriores, opta por um texto mais enxuto, porém mais desbocado. E se a voz masculina se apresenta como novidade, a temática do sexo reaparece de forma mais crua, sem tanta elucubração:
sou bem-aventurado no silêncio. um fantasma no vaivém de homens, cegos pela ansiedade urinária. uso de minha condição, dissimulado, mentindo que estou absorto na rotina do esfregão, para abeirar o mictório. fico paquerando-os, de vários tamanhos e cores, as nervuras salientes sob o prepúcio, as glandes ressecadas, às vezes com pintinhas, às vezes intumescidos.
No fragmento, nota-se o que se poderia chamar de “doença infantil do discurso da sexualidade”, mas daí poder-se-ia acusar o resenhista de moralista. Não se trata de pudor, mas de trechos que poderiam não ter sido cometidos pelo autor, ainda que pertençam ao ethos do narrador. Por quê? Porque é desnecessário, oras. Sutilezas existem para isso. Algo como noblesse oblige.
Em papel do cão, existe um paralelo, já nos primeiros parágrafos, que cativa o leitor. A saber: a aproximação entre o protagonista da história e um cachorro. Lá pelo terceiro parágrafo, o narrador diz: “a nossa única diferença é quando sentimos fome. O meu cachorro não consegue controlar seu apetite”. E é diante dessa improvável confissão que se torna viável a especulação sobre a humanidade do cão ou da possível condição bestial que vive o protagonista, suportando abusos sem se dar conta de que são abusos, o que se percebe graças ao seu discurso, simplório e contundente, sobre seu cotidiano. O efeito produzido é de incômodo, o que remete à categoria de textos que alcançam seus objetivos no que se poderia classificar de “poética do autor”.
Ainda que demasiadamente breve (são apenas 96 páginas), Cavala apresenta um autor, Sérgio Tavares, dono de uma voz que não deixa enganar sobre sua veia de grande narrador. A título de classificação, melhor seria qualificar Cavala, que dá nome ao livro, como novela, enquanto os demais estão bem adequados ao gênero conto. Para além da extensão (tamanho, nesse caso, não é documento), o primeiro texto se destaca em relação aos demais, especialmente por ocasião de seu conteúdo original, que não repete fórmulas ou discursos já celebrados. E esse pode efetivamente ser o caminho para que o autor não caia na esparrela da narrativa curta que prefere a sensação e o espetáculo à discussão sobre a condição humana. Os melhores textos dos grandes contistas brasileiros de todos os tempos optaram pela segunda opção. Já na estréia, portanto, Sergio Tavares aparece em boa companhia.
3 Perguntas – Sérgio Tavares
• Por que iniciar a carreira literária com um livro de contos?
Dentre seus diversos formatos, o conto foi aquele através do qual a literatura naturalmente se manifestou para mim. Provavelmente por afeição, já que aprecio as narrativas curtas, ou por admiração, influenciado pelos meus autores preferidos: Cortázar, Borges, Murilo Rubião, todos contistas por excelência. Sou jornalista, trabalho com assessoria de comunicação e, no dia-a-dia, produzo reportagens, editoriais, artigos, mas, no campo ficcional, nunca me aventurei além das fronteiras do conto. Muito embora seja um gênero preterido pelas editoras e pelo próprio mercado literário, considero o conto dotado de uma composição mais complexa e difícil que a do romance, pois cobra do autor um dos maiores desafios da escrita: a concisão. Li algumas críticas que atribuíram à Cavala, primeiro conto do livro, a estrutura de uma pequena novela, porém nunca a pensei desta forma. Isso não quer dizer que serei um eterno contista, mas hoje não consigo pensar em escrever um romance, diferente da estrutura de um grande conto.
• Como foi o seu primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
A literatura começou a fazer parte da minha vida muito cedo, e de maneira inusitada. Os primeiros livros que li eram da biblioteca da minha mãe, romances policiais e clássicos da literatura, algo não recomendado para crianças. Mas acho que foi isso que tornou claro esse desejo precoce de ser escritor. Fiz jornalismo por isso, um desvio para continuar no universo da escrita. Hoje vejo que estava certo, que não estava perdido, mas apenas não tinha sido descoberto. Agora tenho meu primeiro livro e um enorme desafio: encarar a literatura com sobriedade para manter viva a minha obra. Quando se é um autor desconhecido, o impulso se sobrepõe à autocrítica.
• O que você espera alcançar com sua escrita?
Dependência. Sigo o sonho da maioria dos escritores brasileiros: viver da literatura. Quando recebi o Prêmio Sesc, ouvi de um autor, também ganhador do prêmio, que o desafio maior não era lançar o primeiro livro, mas o segundo. É onde estou agora. Sinceramente, não tenho pretensão de ser um autor de best-sellers, e sim um autor em constante produção. Escrever faz parte de mim, um desejo que ao mesmo tempo aflige e satisfaz. Tenho personagens em mim que querem ganhar o mundo e, para isso, preciso continuar escrevendo. Existem várias formas de o homem entender a sua existência, e a literatura é a minha. Não posso ser um autor de um livro só, não seria justo comigo.