Curitiba, a real — que também é uma obra de ficção — já ganhou espessura literária. Newton Sampaio (1913-1938), Dalton Trevisan, Jamil Snege (1939-2003) e Cristovão Tezza são alguns, entre muitos, autores que fizeram da cidade cenário para peças fictícias. É possível, até, entender que — a exemplo da corrida do bastão — os autores tenham se alimentado das sugestões e rastros dos antecessores para a edificação de suas cidades imaginárias. Carlos Machado, curitibano de 1977, é um autor que bebeu, por exemplo, em águas daltonianas e tezzianas, entre outras fontes, para elaborar a sua Curitiba ficcional. Isto pode ser verificado nas páginas de A voz do outro e Nós da província: diálogo com o carbono, livros de contos publicados, respectivamente, em 2004 e 2005. Agora, em 2006, Carlos Machado surge com outra obra — um romance ou, talvez, uma novela. Trata-se de Balada de uma retina sul-americana. E Curitiba está, mais uma vez, a pulsar na literatura deste escritor.
Balada de uma retina sul-americana é, entre outras coisas, um diário de viagem. O narrador, acompanhado de outros possíveis mas irrelevantes personagens, sai de Curitiba e, durante 31 dias, se desloca, de carro, pelo continente sul-americano. A narrativa, então, apresenta — como se fosse, mesmo, o diário de um viajante — as observações e as impressões do narrador durante o trajeto. E, onde quer que pare ou passe, ele se depara com Curitiba. Há, para o narrador, Curitiba em todo e qualquer canto do continente. Na fronteira meridional. Na Argentina. No Uruguai. No Chile. “Tão longe, tão diferente: mas apenas mais uma Curitiba.” Nas ruas. Nos prédios. Nas praças. Na comida. No ar. Nos sentidos. Sobretudo, dentro dele. A retina e o imaginário do narrador são contaminados com isso que se chama Curitiba. E, assim, Curitiba estará com ele onde ele estiver.
A balada do narrador tem na música pop uma trilha sonora. Noel Rosa. Whitesnake. Adriana Calcanhoto. Portishead. Lenine. Piazzola, etc. E, no embalo do ritmo veloz, urgente e ágil da narrativa, a viagem chega ao seu final. Em casa, o narrador faz de um banho o ritual necessário. “Viu o verde dos pampas, as rochas cinzas argentinas, a água salgada e gelada do Pacífico, a areia do deserto e a espuma de seu sabonete passarem pelos seus pés e descerem pelo ralo. Tão logo se deu conta, saiu do chuveiro apressado a tempo de conseguir recolher um pouco dessa água em um copo”. A partir daí, renovado, poderá — enfim — usar as retinas para rever a cidade inescapável e, quem sabe, revisitar a Praça Osório, redescobrir a Rua 15, reinventar o paladar diante de um prato de sopa no bar Gato Preto e, numa dessas, espiar mais uma vez a casa que fica na esquina das Ruas Ubaldino do Amaral e Amintas de Barros — onde o Vampiro se esconde.
(Nos últimos instantes da narrativa, há uma brincadeira a respeito da autoria do texto, a voz do outro — marca já reconhecível da literatura de Carlos Machado).