Inovação é sempre um choque quando se trata dos empoeirados e medievais métodos de estudos literários, mesmice e repetição, os seguranças do tedioso cofre da literatura. Franco Moretti foge à regra. Criou um método em que combina geografia cultural com a análise de dados estatísticos, com o objetivo de explicar os processos evolutivos da literatura. Inova, sem desprezar o óbvio. Diz: “Os livros sobrevivem se são lidos e desaparecem se não o são”. Só mesmo Joyce, Cervantes e Simões Lopes Neto — com seus Ulisses, Dom Quixote e Contos gauchescos, os livros mais lidos que ninguém leu — podem contrariar essa “brilhante” máxima de Moretti. Qualquer leitor, em qualquer tempo, sempre foi atraído pelo novo, e dessa forma se estabelecem os ciclos que veremos adiante. Este aprendiz se atreve a acrescentar uma palavra para tornar ainda mais óbvia a frase do estudioso e pesquisador da literatura Franco Moretti: “Os livros e os escritores sobrevivem se são lidos e desaparecem se não o são”. Quanta perspicácia a minha.
A literatura vista de longe não é de todo uma novidade, como você também pode ver, paciente leitor. Moretti nos foi apresentado em 2003 pela editora Boitempo, em Atlas do romance europeu: 1800-1900. O autor apresentava ali sua aversão ao “close reading” da tradição de língua inglesa, ou seja, a leitura de perto dos grandes textos, dos grandes romances. Diz o autor: “Distant reading, chamei uma vez, um pouco por brincadeira e um pouco não, a este modo de trabalhar em que a distância não é um obstáculo, mas sim uma forma específica de conhecimento. A distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, os patterns, as formas.”
E isso não lhe parece óbvio, arguto leitor? É uma maneira de conhecer, de longe. Não significa ser melhor do que examinar bem de perto e à exaustão. Vantagens e desvantagens sempre aparecerão, em qualquer uma das escolhas.
O que se pode dizer, para começar, de A literatura vista de longe? Que se trata de um guia de leitura? De uma propaganda, nada corriqueira, de como se analisar e estudar a literatura? Sim, pode ser tudo isso e mais a solidão, caso se pretenda estender esse universo aos meios acadêmicos, por demais enfastiados em seus medievais e sonolentos conceitos. E nessa queda de braço entre a crítica e os academicismos, infelizmente a vantagem ainda está com estes conservadores.
Sem chororó
Moretti discorre acerca da cultura ocidental e atesta sua decadência, mas não espere um chororó por parte deste criativo autor. Com espírito brechtiano, ele trata da decadência dos departamentos de literatura das universidades. Também sem lamentações, entende que das cinzas pode brotar o novo: “Uma disciplina que está perdendo o seu fascínio pode tranqüilamente arriscar tudo e procurar um novo método”.
O método de Moretti viaja pela contramão das dissertações e teses de mestrado e doutorado. O mestre e o doutor saberão tudo, tudo e mais o que inventarão, sobre determinada obra. Estarão aptos a palestrar ad infinitum acerca desse seu esquálido corpus, impressionarão incautas platéias e, na seqüência, cobrarão, de seus miseráveis alunos, artigos e mais artigos sobre seu único tema. Mas com uma condição: jamais contrariar o mestre, o doutor. Enquanto isso, “lá vem a literatura descendo a ladeira”.
Moretti, apesar de professor de literatura, não acompanha a grande massa de seus colegas e críticos. Propõe o inusitado, algo beirando a heresia, a maldição, aos patéticos puristas. Os puristas sempre são patéticos. A propósito, quem critica a crítica? Quem critica essa parasita, extrema dependente da obra que disseca? Você deve estar se perguntando, astuto leitor: “Então por que esse idiota escreve resenhas críticas?”. E o idiota responde: “Por que gosto de escrever sobre algo que me agrada profundamente”. Mesmo assim, cabe ressaltar que a obra de arte não precisa da crítica.
Voltando, mais objetivamente, à obra de Moretti, é importante dizer que seu método sugere algo próximo à prática de economistas, contabilistas, geógrafos e biólogos. Cálculos, estatísticas, gráficos, mapas, árvores, isso tudo para examinar não uma obra apenas, ad nauseam, mas períodos. As conclusões, preliminares no dizer do próprio autor, são animadoras. Mas também convém não cair na esparrela de que seja o que for, desde que acompanhado de um gráfico, é o retrato da verdade. Calma! A literatura vista de longe é uma novidade, por enquanto com habilitação provisória. Reservo a ela um lugar na minha estante de curiosidades. Não reprovo essa tese de Moretti, no entanto me parece que tal preocupação com o macro — pronto, incorporei o jargão economês — deixa de lado o básico, o criador, a vontade criadora e um receptor ao menos capaz de se relacionar com essa obra. Até mesmo as obras inéditas contam com pelo menos um leitor: o próprio autor. No entanto, a relação entre autor e leitor/leitores não ocorre sem a mediação da crítica. Me refiro à percepção do leitor, à sua capacidade de fugir aos rasgos sentimentais e avançar numa análise estética e intelectual. Para isso serve a crítica, e Moretti podia ter aprofundado o exame desse papel. Esqueci: sua teoria visa “o macro”.
Sigamos, pois.
Evolução natural
A literatura examinada por Moretti é uma literatura que, geograficamente, se situa bastante distante da terra de Macunaíma.
No primeiro gráfico, a pesquisa do autor contempla o aspecto quantitativo. O motivo é o romance, ascensão e queda. Traduzindo: mercado. Moretti trata das curvas, da ascensão e da queda do romance, enumera suas causas e mostra a literatura como refém de determinados ciclos. A saber: a questão do gênero — ou a guerra dos sexos, caso você prefira assim, leitor pouco afeito a eufemismos.
No século 19, o romance britânico era um território ocupado quase que exclusivamente por mulheres. Jane Austen é sua autora emblemática. Retrata o ambiente doméstico onde o objetivo da “pobre moça de família” é o casamento. Assim como Austen, inúmeras outras engrossam essa fila. A seguir, temos o ciclo do romance histórico de aventura, sir Walter Scott e seu Ivanhoé, constituindo uma literatura extremamente masculina e belicosa.
Como disse no começo, A literatura vista de longe é, sem a menor dúvida, um livro curioso. Tão curioso quanto a enumeração de 44 subgêneros do romance, sugerindo um território ainda virgem da teoria literária. Dependendo da época: picaresco, sentimental, náutico, de formação, doméstico, religioso, histórico, de conversão etc. São subgrupos bem diferentes nos levando a concluir que tanto faz a sua orientação, diacrônica ou sincrônica, o romance é “o conjunto de seus subgêneros”.
O capítulo Mapas conduz o leitor ora ao campo, às vilas, às pequenas cidades, ora à cidade, à cidade industrial, e, dessa incessante tensão entre espaço e forma, são traçadas as transformações do romance. Interessantíssimo.
Ainda no terreno das curiosidades chega-se ao capítulo Árvores. O economista dá lugar ao biólogo, ao botânico, e à sua persona darwiniana. A ferramenta é a biologia evolutiva. Com ela, Moretti oferece sua explicação à evolução das formas narrativas, dos clássicos. Ele aprofunda esse estudo a partir do século 19 até a literatura latino-americana: Roa Bastos, García Márquez, Carpentier, Vargas Llosa. Se a seleção natural é fundamental à evolução da vida, Moretti afirma que, com o romance, ocorre algo semelhante. Extremamente objetiva, essa análise também é, no mínimo, duvidosa. O autor cria árvores e estabelece relações de fulano com beltrano. Mas os sicranos best-seller não aparecem sequer como pragas. Negá-los? Como?
Enfim, dentro de uma obra encontramos uma série de lutas, de tensões. Partir daí para o exterior, e lançar de longe um olhar sobre essas obras, sempre comparadas ou alinhadas a outras, à mercê das mudanças da sociedade — sejam elas econômicas ou políticas —, é desprezar a obra propriamente dita.
A literatura vista de longe, insisto, é um livro, uma tese curiosa, uma abordagem inovadora, mas vulnerabilíssima. Instigante, um livro a despertar curiosidades, já está de bom tamanho. Mas não leve esse comentário muito a sério. Leia o livro. E não se esqueça da inferioridade ontológica da crítica quando comparada com a literatura.