Cuidado ao escrever, cuidado ao ler

Resenha dos livros "Contos com monstros" e "Sete contos de fúria", de António Vieira
01/07/2002

Passei uma noite preocupado com o que iria escrever neste espaço que me foi destinado nesta edição do Rascunho. Li os livros de António Vieira com uma sonolência monstruosa e acho que esta afirmação encerraria tudo. Tenho, contudo, de me alongar, de justificar meu sono (Donaren + Rivotril, meio comprimido de cada, além de uma superdepressão pós-Penta).

Começo dizendo que não gosto de Borges. Nem de Kafka. Do primeiro porque sua erudição fajuta é exatamente aquilo que encanta certos catedráticos, que escrevem teses e mais teses sobre o nada em Borges. O escritor argentino seria, pois, um deus nos meios acadêmicos, o que me causa arrepio. Se li alguma coisa dele? Claro que li. Na verdade, li quase tudo. E posso dizer que seus contos simplesmente não me tocam. São de uma monotonia oceânica, de uma tentativa de construção de um mundo paralelo totalmente falha, de metáforas intransponíveis, de imagens lerdas e sem força. Enfim, como disse António Lobo Antunes sobre Fernando Pessoas (no que eu discordo, pessoalmente): “Desconfio de poetas a cujos poemas falta esperma!” (ou algo assim). Nos poemas de Pessoa ainda sinto o visgo da orgia literária; em Borges, contudo, há apenas aquele balançar de cabeça melancólico da impotência.

Quanto a Kafka, bem, aqui entro em terreno perigoso. Kafka é uma unanimidade. E acho, sinceramente, que ajudou muito o mito em torno da morte dele, de como os seus manuscritos foram publicados, esta coisa toda. O leitor, e os críticos ainda mais, gostam dos malditos. Porque estes lhes dão a sensação da redenção, quando cometem — e vivem(os) cometendo — algum erro de julgamento.

Pois bem. Comecei falando de Kafka e Borges porque os dois são explicitamente as influências do contista português António Vieira, que está sendo editado no Brasil pela Globo. Aliás, antes que digam que não falei de flores, vale a pena dizer que as capas da editora Globo para os livros de Vieira são verdadeiras obras-primas. Que ao menos servem para disfarçar o conteúdo fraco das coletâneas de contos.

O mesmo julgamento vale para Contos com monstros e para Sete contos de fúria. São livros escritos com a pena da erudição, que talvez seja uma galhofa atravessada, uma piada que não deu certo no meio do bar. Ajuda, para um efeito tão absurdamente ao contrário do que se espera de uma boa literatura, o fato de Vieira ser psicanalista. Qualquer pessoa que atravessar o primeiro conto de qualquer uma das coletâneas perceberá que Vieira quis fazer, em cada uma de suas histórias, o caminho inverso do de Freud em A interpretação dos sonhos.

É assim que ficamos desnorteados logo no princípio, ao ler os primeiros contos de Contos com monstros. Aturdidos, vamos seguindo linha por linha, para ver onde vai dar esta coisa. E, no ponto final, descobrimos finalmente onde fica o lugar-nenhum. Exagero meu, obviamente. O conto nos permite interpretações várias: solidão, racionalidade versus irracionalidade, coisas assim. Sinceramente: se você, leitor, precisa de um livro para divagar sobre estes temas, ou sua vida anda corrida demais (e o ócio faz, sim, bem para a saúde mental, ainda que discordem de mim 90% dos psiquiatras), ou o negócio é pegar leve e começar com algo menos… metafórico. Algo como Paulo Coelho, por exemplo.

Assusta-me livros como os de António Vieira. São inegavelmente bem construídos, os contos; as frases, algumas, têm uma poesia rara; ao mesmo tempo, são livros de leitura dirigida que, se caem em mãos erradas, podem acabar com o saudável vício da leitura.

Portanto, recomendo os livros deste senhor somente para aqueles que já leram até o volume 13 das Obras completas de Freud, ao menos o Aleph, de Borges, todo o Kafka e um pouquinho de Wittgenstein, para apimentar.

Por falar em leitores, vale a pena avisar a quem anda escrevendo muito por aí, que os personagens não devem ser assassinados jamais. Sobretudo em primeira pessoa. Porque tem gente fazendo boletim de ocorrência contra os autores, nestes casos. Melhor se prevenir, antes de ser tachado de serial killer literário.

Ah, e para quem quer ler uma boa literatura portuguesa, leia o Fado alexandrino, de António Lobo Antunes, que acaba de sair no Brasil. Você não vai se arrepender.

Contos com monstros
António Vieira
Globo
160 págs.
Sete contos de fúria
António Vieira
Globo
178 págs.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho