Crueza e poesia da alma humana

Resenha do livro "Coração aos pulos", de Carlos Herculano Lopes
Carlos Herculano Lopes, autor de “Coração aos pulos”
01/11/2001

O jornalista e escritor mineiro Carlos Herculano Lopes acaba de lançar um precioso volume de contos: Coração aos pulos. Enfeixam a obra 40 contos (alguns de seus melhores trabalhos já publicados e outros inéditos), compondo um mosaico de ficções que resultam de seu habilidoso artesanato, em que está presente o universo social e humano, com suas histórias reais ou insólitas .

O autor captura a singeleza e banalidade dos pequenos acontecimentos provinciais e urbanos, ao mesmo tempo em que resgata o que há de surreal, pitoresco, inusitado e mítico na vida. Recorre, por meio de alusões, e com um tratamento literário sutil, a ocorrências ancestrais que povoam a memória, com toda intensidade dos referenciais do passado. Lança sobre eles um olhar lírico, em contraposição à tendência atual de uma prosa cosmopolita, fragmentária e pretensamente universal.

Em comunhão com a infância e suas invocações mais fortes, tange situações que habitam o imponderável, reconquistando aquele mundo paroquial encravado em nosso inconsciente e que ao criador é um constante desafio, provocado pela carga de tensão, psicologia, delicadeza e mistério. Seu senso de observação e sua criatividade caminham na direção da verdadeira universalidade, invocada por Tolstói, segundo ele alcançada quando cantamos o nosso quintal e a nossa aldeia. Assim é que os caminhos de Minas e de uma mítica Santa Marta delineiam o território em que pululam seus personagens.

Autor de obras antológicas como O sol nas paredes (1980), Memória da sede (1982), Sombras de julho (1991) e O último conhaque (2000), Carlos Herculano Lopes foi premiado em importantes concursos literários, entre eles Cidade de Belo Horizonte, Bienal Nestlè de Literatura e Guimarães Rosa , além de publicar nos principais suplementos literários do país. Dono de um estilo muito peculiar, escrevendo uma prosa diáfana, poética, concisa e particularmente identificada com os pequenos dramas domésticos e sociais, incursiona pela alma humana, mergulhando na força e dimensão dos sentimentos e problemas cruciais do indivíduo, com uma sensibilidade que busca uma reflexão sobre o hiatos existenciais, sem descer ao emaranhado de palavras inúteis.

Alguns contos são paradigmáticos da intensa relação do autor com esses dramas e vazios do ser, como em O homem, A descoberta, O limite, A aparência, O desafio e A revelação. No plano da construção formal, refletem também sua experiência com uma linguagem descarnada, sincera e seca, que marcou muito o comportamento de nossa geração, tão ávida por entender a condição humana e buscar um sentido e uma razão além da opacidade das relações.

O desapego aos modelos convencionais de narrativa encontrou em Carlos Herculano sua ressonância, cujo modo de elaboração guarda coerência com a própria crueza da realidade, pois sua representação se concretiza na objetividade e clareza das histórias curtas. Não admite truques ou maquiagens estilísticas no desvelar a vida como ela é. Não obstante as lutas e angústias de cada um, o autor consegue extrair lirismo e poesia das circunstâncias.

Coração aos pulos revela não só a opção do autor pela síntese e pela economia de meios, mas seu empenho na construção de uma prosa transcendente, simbólica e delimitadora de um espaço em que a realidade se nutre também de elementos oníricos. Impõe-se pelas imagens e signos invocados em textos curtos e ideais, que cumprem seu papel de nos comunicar um mundo imaterial e afetivo.

Mesmo em alguns contos mais longos (Estas lembranças, Caminhos de volta, Um brilho no escuro, Coração aos pulos e No embalo da rede, um dos textos mais pungentes do livro) está presente sua preocupação com a faxina na forma e no conteúdo, lembrando a dicção de mestres que adotaram o minimalismo ficcional, como Dalton Trevisan, Paulo Leminski e Evandro Affonso Ferreira.

Carlos Herculano Lopes, ao longo de sua vitoriosa carreira literária, confirma não apenas o talento versátil e o estilo singular, mas seu vínculo e compromisso com uma arte do mais alto padrão estético.

Coração aos pulos
Carlos Herculano Lopes
Record
114 págs.
Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho