Uma mãe que leva a educação da filha aos extremos da tortura psicológica. Uma filha que, reagindo às imposições, vai frustrando todos os desejos e sonhos maternos. Enfim, uma guerra surda entre duas mulheres que, a rigor, nunca conseguem atingir a maturidade.
O enredo do romance A pianista, de Elfriede Jelinek, ganhadora do Nobel de Literatura de 2004, se mostra prosaico e até bastante trabalhado por outras tantas escritoras. No Brasil, por exemplo, o tema foi visitado por Cíntia Moscovich no romance Por que sou gorda, mamãe?, embora sem uma perversidade tão intensa presente no texto da austríaca.
Apesar desta, digamos, recorrência, A pianista é um romance surpreendente em praticamente todos os seus aspectos. E tudo começa pela linguagem. Embora seja difícil avaliar a porção de liberdade tomada pelo tradutor, neste caso Luis S. Krausz, o certo é que há uma elegância e um refinamento encantadores no trabalho frasal da autora. Mesmo quando descreve cenas de degradação extrema, como a ida da protagonista a uma casa de strip-tease ou a delação de uma amiga de adolescência que se prostituía, Elfriede trabalha com palavras edulcoradas, frases quase pueris. “Erika ergue do chão um pedaço de papel higiênico encharcado de esperma e o coloca diante do nariz. Inspira profundamente aquilo que um outro produziu por meio de trabalho duro. Ela respira, olha e desprende um pouco do seu tempo de vida ao fazê-lo.”
A graça quase infantil do texto, na verdade, é um reflexo da alma dos personagens. Suas obsessões são tantas que nada as pode levar à maturidade. A mãe quer fazer da filha uma grande concertista e a leva a estudar de maneira obstinada e quase doentia. A cena do verão, quando todos os adolescentes nadam e se divertem enquanto Erika estuda piano é um bom exemplo disso. A filha, por sua vez, resiste às pretensões maternas e, talvez até como parte de sua oposição interna, não se faz a artista sonhada. Assim, torna-se professora.
Outro instante brilhante do livro, a cena em que Erika toca em dueto na casa de uma família que tem dois pianos e outros instrumentos raros, mas nenhum carro, dá sinais dos motivos do fracasso voluntário da artista. Ali ela brilha, recebe todos os aplausos e elogios e volta para casa de bonde. Festa acabada, músico a pé. Assim paga o encargo de ter falhado no momento de sair da condição de estudante para se tornar concertista. Um desastre que pode ser creditado mais à mãe que à filha.
Neste aspecto mostra-se uma das grandes qualidades do texto de Elfriede Jelinek. Embora tenha uma narrativa que constantemente muda de voz, em momento algum há uma interferência velada da autora na vida dos personagens. Em outras palavras, ela jamais emite sua opinião e prefere construir a personalidade de cada uma de suas criaturas a partir de cenas, num brilhante trabalho de percepção artística.
Sutilezas
Aliás, no tocante às sutilezas, Elfriede é uma mestra. Tudo no romance transcorre no campo das miudezas, dos pequenos gestos, dos hábitos comedidos. Até mesmo o humor chega com leveza, é quase imperceptível. “A mamãe se transformou num carro de escolta para poder vigiar a vanguarda do jovem casal”, escreve para falar da posição da mãe que acompanha a filha voltando para a casa em companhia de um aluno.
As sutilezas, no entanto, são tijolos imprescindíveis na construção do objetivo principal do romance, descrever os extremos da crueldade. Aprendemos a olhar indignados para todas as grandes tragédias que nos chegam pela televisão. Isso nos deixa alheios às desgraças cotidianas que acontecem em nossa vizinhança. Lutando contra a letargia, A pianista tem o mérito de desnudar a formação paulatina da derrocada de duas pessoas que, em suma, são a representação de toda uma sociedade.
Estas mulheres não são intrinsecamente más. Pelas pistas que podem ser apanhadas nas entrelinhas do romance, são, na verdade, frutos de uma sociedade que vive em permanente tensão. O sucesso é uma obrigação, a qualidade, uma ordem. Um lugar onde se vive contra o muro, onde somente há dois espaços: o ápice ou o fracasso. Estas questões culturais entranham-se na mãe, enlouquecem o pai e endurecem a filha que, tolhida de qualquer sensibilidade, se inutiliza até para as paixões.
Desta forma vem a falência da arte como libertação. Aquilo que seria uma profissão de glória, a condição de concertista internacional, transmuta-se numa tortura e na opção pela modesta situação de professora que junta tostões para, outro desejo materno, comprar um apartamento, e assim se faz a vingança.
A falência, enfim, é mais da mãe que da filha. As duas duelam, se digladiam, administram o ódio mútuo como antigos espadachins que se esgueiram na noite de cada uma delas na busca da ferida mais letal. É um jogo onde os participantes não encontram mais o exato ponto final. O vício, de tão forte, paulatinamente mata as duas mulheres.
Mãe e filha estão refletidas em um mesmo espelho, não há como dissociá-las do mundo onde se formaram. E mais que mostrar a guerra surda das duas, Elfriede Jelinek revela as entranhas de uma sociedade que aponta sempre para o longe, o inatingível. Ou seja, faz uma dolorida reflexão sobre os pressupostos da contemporaneidade.
A pianista é, enfim, um livro com um bom enredo, contado dentro de uma excelente narrativa e construído de maneira refinada e divertida. Ou seja, um romance com todos os predicados de um clássico.