Em que tempo vivemos? A pergunta está em tudo, ou quase tudo, que se produz em literatura atualmente. Tanto aqui como em outros cantos, em textos falando de hoje quanto de ontem, a pergunta é recorrente. Marcílio Godoi em seu novo livro, Como escovar os dentes em um incêndio, de narrativas breves, que marca sua estreia como contista, ajusta-se ao time de questionadores. Que mundo é este?
Vivemos de contradições? Sim. Ao mesmo tempo que explodem fortunas, há uma imensa parcela da população na extrema miséria. As guerras fundamentalistas estão em toda parte, mas há comunidades pelo mundo sonhando, e meditando, o sonho hippie de paz e amor. Em poucos momentos da história a força do conservadorismo foi tão forte, mas os movimentos de libertação social, racial e de gênero também nunca tiveram tanto espaço e foram tão escutados e respeitados.
Este caldeirão efervescente circula livremente pelos textos de Marcílio Godoi. Aliás, já se apresenta no próprio título, Como escovar os dentes num incêndio. Por aí se chega à formalização de textos metafóricos. A contradição entre o ato banal e, de certa forma, tranquilo de escovar os dentes se opondo ao desespero de quem está no meio do fogo, preso num escaldante espaço, reflete o nosso tempo. Todo sossego pode ser invadido por um assalto, um conflito, uma guerra, um desastre. E este é o mundo de eleição do autor, que nos conta deste universo sempre pelo viés do entredito, das entrelinhas.
Caminhando por estas veredas, o trabalho fica marcado pelos opostos: amarguras e doçura, ontem e hoje, maldade e bondade. Há, no entanto, uma sutileza que certamente se apresentará ao leitor mais atento. Marcílio foge do maniqueísmo e, claro, do julgamento de seus personagens. Ele joga com vidas narradas sob o prisma do paradoxo. Este claro-escuro que surpreende a toda gente num determinado ponto da vida é que encanta o escritor.
É um outdoor volante, Carmen, derramando-se sobre a cerca viva, minha Vênus Carmen. Carmen já sem pernas visíveis, Carmen enfática e multidirecional, subitamente insurgida de sua vida pacata, arranjo floral deslocado para fora de tudo, explosão tentacular de fogos de artifícios, soberana efusiva, brilhante dirigível se afastando ao longe, em pleno sol a pino.
Daí se chega à variedade etária e social dos personagens. Pouco importa em que ambiente — sofisticado ou degradado — insere-se o personagem, pois Marcílio quer falar de vidas, e exatamente no que elas trazem de degradação e sublimação. Daí este panorama tão vivo que, de certa forma, está sim nos noticiários, mas não narrados com a força poética e até lírica destas narrativas.
O PF mal chegou, e ela avançou sobre ele feito um bicho. Comia com a voracidade de um leão, desses de documentário. Fechava os olhos no meio de cada garfada, o que revelava o tamanho de seu jejum. A luz fria do quarto iluminou de chofre a tristeza que havia na cena, de modo que preferi me afastar um pouco.
Sim, a linguagem, também escalada entre o verbo mais satânico e o celestial, minasse num campo de contradições. É leve quando fala de dores e dura quando quer edulcorar os fatos. E salta do formal ao coloquial com desenvoltura, sem as máculas do macaquear já condenado por Manuel Bandeira, dando mais que veracidade, verossimilhança à linguagem do trabalhador braçal e do intelectual, também.
À altura do braço, segue a mesma geografia acidentada do tempo. Quando ele arregaça as mangas do pijama para comer, vê-se, através da fina hidrografia, o desenho dos músculos retendo e mantendo ainda íntegro o conjunto que, nos delicados jogos de contrapeso dos reflexos, resulta-lhe no rosto um sorriso de agradecimento.
Este destaque dos personagens visto no linguajar trabalhado, também ganha protagonismo nos títulos dos contos. Todas as narrativas trazem como título o nome do protagonista, mesmo quando ele não tem nome. Ao procurar recortes de vidas, que, indiscutivelmente, termina por definir toda uma vivência, Marcílio fotografa retratos pessoais que formam o panorama de um tempo. E esta é sua obsessão, depor sobre um largo momento que ele até pode não ter vivido em toda sua intensidade, mas do qual certamente fez uma leitura apurada e marcante.
Isso, claro, resvala na arquitetura dos contos. Velhas verves de que “conto é tudo aquilo que chamamos de conto”, como disse Mário de Andrade, ou, o mote de Julio Cortázar, “no conto vencemos o leitor por nocaute”, parecem ir por terra. Praticamente todos os quarenta e três textos aqui enfeixados formam-se numa estrutura bem delineada: narra-se um recorte de vida, ponto, sem qualquer subterfúgio de surpreender o leitor. O encantamento fica por conta da forma narrativa, com suas nuances, suas metáforas, suas descrições de momentos as vezes até pueris, mas indiscutivelmente bem representativos daquele mundo perdido entre a doçura e a dor que tanto busca descrever o autor.
Em uma leitura mais ampla, Como escovar os dentes num incêndio é mais um passo bem dado dentro do que podemos chamar de construção de uma carreira literária. Marcílio Godoi pode até não ter pensado, ou projetado isso, mas a sequência crescente de suas publicações revela um escritor preocupado, ou atento, à necessidade de permanecer em campo, não ser um jogador de curto fôlego. Sua trajetória começa por um livro reportagem, passa pela literatura infantil e o romance e chega ao conto que, para surpresa de muitos, é uma forma de difícil exercício, pois nem sempre a concisão que exige é atributo de todo escritor.
Enfim, não se pode ver Como escovar os dentes num incêndio como mais um livro de Marcílio Godoi, mas como a evolução natural, mas bem trabalhada, de uma carreira real e verdadeira.