Criminoso no divã

Rafael Cardoso escreve um romance com muitos recursos gráficos, mas pouquíssima criatividade
Rafael Cardoso cai nas armadilhas da facilidade e do lugar-comum
01/10/2002

Tenho pena do rapaz que vai receber, 13 anos depois da prisão do pai, um dossiê que mostra que o velho era um louco desvairado, assassino, traidor. E ainda ter de ler um calhamaço de papel organizado pelo próprio tio, um psiquiatra. Provavelmente o tiozão quer ver o moço — que terá 30 anos ao abrir o envelope desgraçado — no divã. Não tem outra explicação. Organizar um dossiê com depoimentos terríveis sobre seu cunhado é de matar.

Mas é isso mesmo o que vai acontecer com o pobre Rodrigo. Que é um personagem de ficção, por sorte. Foi criado pelo escritor Rafael Cardoso para ser o “fio condutor” de Controle remoto, um livro despretensioso baseado na história do assassinato de Sandra Gomide pelo jornalista Pimenta Neves. É mais uma versão fantasiosa para o caso escabroso de um assassinato brutal cometido por um jornalista dos mais respeitáveis — que agora quer ser advogado, cuidar de defender a “justiça dos homens”. Já houve uma outra versão para essa história. O argentino Tomás Eloy Martinez escreveu O vôo da rainha, para a coleção Plenos Pecados, da Objetiva. Disse que se baseava ligeiramente no crime. Mas era a mesmíssima coisa.

Cardoso não traz nada de muito novo. A história: professor cinqüentão da Escola de Comunicação da Universidade do Rio de Janeiro (Aurélio Freire Figueiredo, 51 anos) apaixona-se por sedutora jornalista de tevê (Érica Mendes, 32). Os dois têm breves encontros sexuais e o homem, desvairado que é, acaba matando a moça. Ciúme de um outro jornalista, muito mais novo e bonitão. Coisa de Otelo contemporâneo que nem precisa de um ardiloso Iago para cometer assassinato em nome da honra e do amor-paixão-desejo. Loucura disfarçada pela oratória. Camuflada pelo diploma pendurado na parede.

A história é batida. Os motivos para que o crime seja cometido, também. Simples. Muito parecido com o livro da coleção dos pecados capitais. O que diferencia o romance do brasileiro para o do argentino é a forma usada para contar o acontecido. Enquanto o livro de Martinez é todo redondinho, história com começo meio e fim, o de Cardoso é mais ousado. Usa de vários estilos narrativos, vários tipos de texto, para tentar montar uma história coerente. Basicamente é o seguinte: um psicólogo (Dráuzio) organiza um dossiê mais do que completo, com recortes de jornal, trechos de diários, depoimentos e cartas, sobre o cunhado descompensado (Aurélio) que matou a tiros uma jornalista famosíssima e cobiçadíssima pelos homens brasileiros. Pega a papelada reveladora e bota num envelope. Entrega para o coitado do Rodrigo (o sobrinho, filho da irmã mais nova), que só vai poder abrir aos 30 anos de idade (quando o dossiê fica pronto o piazão tem 17 anos).

O calhamaço, como já contei no início, vem recheado de revelações terríveis sobre o pai (cunhado-marido-amante-professor). Lendo aquele monte de papéis, Rodrigo vai descobrir que, além de trair a mãe a torto e a direito, o pai era um cabra sem escrúpulos, que nunca pensou duas vezes antes de derrubar quem quer que estivesse no caminho para poder subir mais e mais rápido, que era um onanista de mão cheia (trocadilho infame, este). E que era um assassino. Diz ele (o Aurélio) que não tinha nada de louco. Que dava uma de maluquete para escapar da prisão. Explicou na carta que escreveu a Rodrigo: “Eu não matei Érica por causa de um defeito intrínseco meu (não sou louco); matei-a porque fui escolhido (ela me escolheu) para expiar sua culpa, para fazer justiça e restaurar a ordem oculta das coisas.” (p. 203). Quem acha que isso não é loucura…

Bem, o livro é composto de capítulos que mudam de acordo com o autor do texto. O primeiro mostra a degravação de um programa de tevê em que Aurélio é entrevistado por Érica (aí é que começa a loucura do jornalista). A bela jornalista joga charme e põe o homem na berlinda, sabatinando-o sobre o livro que publicou sobre a influência da tevê no comportamento humano. Didático. Em seguida, reúne recortes de jornais que tratam do crime. Aí há uma forma interessante de mostrar a história. Pelo ponto de vista de jornalistas fictícios. Mesmo que assinando matéria em jornais conhecidos. Explico melhor: Cardoso escreve matérias jornalísticas usando como exemplos tipos de textos dos jornais Folha de S. Paulo, O Globo e O Dia. Obviamente, todos inventados. Mas diagramados como se fossem os periódicos. As matérias têm tudo o que um acadêmico de jornalismo aprende na universidade: lead, corpo de texto, box, artigos. “O professor universitário Aurélio Freire de Figueiredo, 51 anos, titular da Escola de Comunicação do Rio de Janeiro, matou ontem, com cinco tiros, a jornalista Érica Mendes, 32 anos. Há indícios de que o crime foi passional, segundo a Polícia Civil. Érica era conhecida nacionalmente como ex-correspondente do Jornal Nacional da Rede Globo e como apresentadora do programa Milênio da Globonews […]” (p. 36).

O capítulo seguinte é o mais interessante. Trata-se das páginas do diário de Aurélio, desde que ele conheceu Érica. Ali, Cardoso pode realmente “soltar a imaginação” e escrever um texto mais saboroso, mais denso. O homem é um louco, já disse. Portanto, seu diário é recheado de fatos interessantes, de pensamentos nebulosos.

“Sexta-feira, 13. Que medo! Medo de quê? De que você possa, apesar de tudo, acabar sendo mais forte do que eu. Não sei se agüento mais brigar com você, quando na verdade queria apenas que você me quisesse um pouquinho, como me quis naquele dia, no camarim. Amanhã vai fazer um mês que seu corpo encostou no meu, que sua boca se abriu para mim, que seus olhos me voltaram toda a sua atenção. Desde aquele dia, tudo mudou para mim. Eu, que não acreditava na possibilidade de amar alguém, sinto que estou amando você. Como mais explicar a falta que você me faz, a alegria transbordante que sinto quando vejo a imagem de seu rosto na TV, o prazer infantil que tenho de repetir o seu nome? Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica, Érica. Por que você não vem para mim? Aproxima-se o final da tarde, e depois o fim de semana, que é o momento mais trágico para mim. Você sabe o que é ficar esperando o tempo passar, sabendo que você está com outro, com aquele merda que nunca vai saber amar você como eu saberia?
Você não me conhece, Érica” (p. 77).

O capítulo seguinte, tenho de confessar que não agüentei ler. É um artigo, daqueles bem técnicos, sobre psicanálise ou coisa que o valha. Antes de começar o texto, Cardoso (na pele de Dráuzio) avisa a Rodrigo (e aos leitores, portanto): “Esse negócio de discurso acadêmico é muito aborrecido, e já passei da idade de querer mostrar saber. Quem sabe, você terá mais paciência do que eu, ou mais curiosidade? Senão, faça como eu e passe adiante. Garanto que você não perde muito” (p. 88). Se eu perdi algo, não sei. Mas avancei 16 páginas na leitura. Passei direto para o depoimento de uma psicóloga que atendeu Aurélio antes de Dráuzio. A mulher, mesmo com aquela coisa toda de que o que um paciente diz é sagrado, cantou todo o serviço para o colega — já sabendo que o homem ia elaborar o dossiê e passar as informações para o filho dele. Falta de ética. Depois mais dois depoimentos. O primeiro de um colega de Aurélio na Universidade e outro de uma colega de Érica no programa de tevê. Nada de muito interessante.

O capítulo seguinte é um tanto constrangedor. A essa altura, o leitor já sente muita pena de Rodrigo. E, por isso mesmo, a carta de Celina, a mãe, é mais uma porrada. A mulher, também descompensada — diz que viu uma santa, quando mais nova, sofreu horrores por causa do pai e acabou internada em um sanatório, casou-se com Aurélio mais para sair da casa dos pais do que propriamente por gostar do moço — escreve coisas que nenhum filho gostaria de saber sobre o relacionamento íntimo de seus pais. “Acho importante mencionar alguma coisa aqui sobre as relações conjugais, por assim dizer, entre mim e seu pai. Imagino que deva constrangê-lo um pouco pensar nesse assunto, da mesma forma que me provoca algum embaraço consigna-lo na página escrita. […] Ele foi meu primeiro e único amante […], e, não sei se por deficiência dele ou inexperiência minha ou por incompatibilidade dos dois, nunca gostei de fazer sexo. […] Nunca hei de esquecer a última vez que em que eu e seu pai mantivemos relações. […] Me aproximei dele e comecei a beijar seu rosto. […] Fui me despindo e acabei por tirar suas calças também. Ele permanecia quase imóvel, resignado à minha autoridade. Subi em cima dele e introduzi seu membro dentro de mim.[…] Chegou um momento em que senti um calor estranho subindo pela espinha, e perdi um pouco a noção do tempo” (págs. 167 e 168). Imagine a cara de Rodrigo lendo uma coisa dessas…

Mais um depoimento — agora da empregada, que reafirma a estranheza do comportamento do jornalista — e, por fim, uma carta de Aurélio para o filho. Aquela em que ele diz que não é louco, que foi escolhido para ajudar a moça a expiar seus pecados. Dá um certo alívio chegar ao fim do documento. Não saber mais detalhes sobre o assassino, sobre o crime, sobre a vida das pessoas. É hora de deixar o pobre Rodrigo em paz. Escutando, ao longe, a voz do pai dizendo que, sim, matou uma mulher à queima-roupa, que é um cara mesmo muito mal humorado, muito desgostoso com a vida. E aconselhando-o a não fazer, nunca, xixi na direção contrária do vento.

Controle Remoto
Rafael Cardoso
Record
205 págs.
Rafael Cardoso
É carioca, mas passou mais da metade da vida (tem 38 anos) alternando temporadas nos Estados Unidos e na Europa. Trabalhou como tradutor, redator, locutor, radialista, letrista de música e DJ. Atualmente é professor universitário e mora no Rio de Janeiro. Escreveu Uma introdução à história do design e estreou na ficção com romance policial A maneira negra.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho