Há duas fortes características que circundam toda a obra de Esdras do Nascimento. Apenas raramente o romancista fez concessão a tais pressupostos. Primeiro vem o urbanismo. Só um de seus livros, Aventuras do Capitão Simplício, de 1982, remonta o universo rural do Piauí, seu estado natal. No mais, seu universo está impregnado do caos urbano. Também poucas vezes deixou de fazer uma literatura onde a eleição se deita sobre grupos sociais. Parece que mais lhe interessa a ação conjunta dos homens que os dramas individuais.
Seu mais novo romance, A dança dos desejos, opus 13, não foge à regra e se mostra com um enredo urbano e grupal. Seu cenário é a Zona Sul do Rio de Janeiro e seu protagonista — se podemos identificá-lo com rigor analítico — é um conjunto da classe média alta circundado pela burguesia inescrupulosa e aética. Acertou quem sentiu um certo ar de maniqueísmo nessa história. Embora essencialmente urbano Esdras herdou um pouco do inconsciente socialista do romance de 30.
O enredo é múltiplo. Parte de um professor universitário, Leonardo, que fica desempregado depois de uma greve. Daí vão se agregando novas ações e novos personagens sem que nenhum deles possa figurar na condição de protagonista. E todos são figuras carimbadas do universo da Zona Sul carioca. Roberto de Aquino é o romancista hedonista. Vivaldo é o jornalista que teme o desemprego e vive as angústias de um relacionamento de mágoas e acomodações com a intragável Do Carmo. Soraya, Carmencita de los Arroyos e Marly são ricas fêmeas fatais que resolvem tudo com sedução ou dinheiro. Há ainda o deputado oportunista e corrupto e a mulher libidinosa, Ivonete, capaz de tudo para conseguir espaço no caminho da ascensão social. Não falta sequer um argentino, Ernesto, com certo talento publicitário, mas perdido por seu envolvimento com o tráfico de drogas.
Isso mesmo. Há muito estereótipo nos personagens do romance. Com certa perícia, Esdras se livra de algumas armadilhas — não de todas — é deixa claro que este jogo de moldar sua criação com o barro do comum e do óbvio é deliberado, intencional mesmo. Ele precisava criar tipos que moram no imaginário do homem comum para fazer valer a intenção de desmitificar o glamour zona-sulista carioca. Para o romancista, ali pessoas comuns vivem suas vidas banais endeusadas pelas cores vivas do lugar.
E neste xadrez Esdras não esquece os desejos, aliás, já salientado no título da obra. Há uma orgia generalizada. Todos copulam com todos numa quase revivência dos bacanais romanos. Não há qualquer pudor neste romance que muitas vezes descamba para a escatologia. Seu autor parece dar sinais de se filiar às vertentes que elegeram a violência e a sexualidade como instrumentais básicos da ficção, atitude que só reduz seu talento narrativo.
No entanto, não se afasta de seus leitores costumeiros nem desvia da linha traçada para sua obra. Alguns personagens, como Roberto Aquino, são recorrentes, vêm de outros romances. Também pode ser visto como uma recorrência a visão mais desalentada da sociedade que analisa. Não parece haver escapatória para o universo construído por Esdras. Todos os pecados levam à falência geral de seus personagens como figuras humanas.
Ele chega ao ponto de quebrar o ritmo narrativo para fazer valer sua tese. O texto é constantemente partido por intervenções aparentemente sem sentido. Uma dessas quebras o autor faz para se debruçar sobre o modo de vida e os costumes de Esparta, a antiga cidade-estado guerreira da Grécia. Sua leitura é de um povo capaz de tudo para preservar o estado permanente de guerra, de um lugar onde mais vale a força, como em alguns pontos do Rio de Janeiro de hoje.
Quebra ainda o texto para transcrever notícias de jornais com descrições da banalização da violência. São notícias reais vindas de todo o país, mas que fazem uma espécie de espelho do Rio de Janeiro moderno, onde a vida se tornou refém da violência gratuita.
O texto volta a ser partido para o romancista falar das experiências geniais e dos fantásticos avanços científicos do projeto genoma. Mapear as células humanas, saber a função de cada centímetro do corpo, no entanto, não vai resultar num homem melhor. Este estará sempre preso ao complexo mundo criado a partir de sua cabeça e de suas crenças.
Há outras quebras, mas seria cansativo falar de todas elas. O certo é que este é um recurso do romanista para aproximar sua narrativa do passado, do presente e do futuro. Enfim, Esparta, violência e genoma aqui são sinônimos das várias etapas vividas pela humanidade. E o Rio de Janeiro é o espaço de tudo isso.
A rigor não estamos diante de um romance onde a cidade é o personagem, como em Terra de Caruaru, de José Condé. Aqui o interesse está voltado para a alma das pessoas, mesmo com um ou outro personagem soando estereotipado. Esdras rompe barreiras e nos oferece um livro em que prevalece uma linguagem corriqueira e sem rebuscamento. Uma linguagem quase franciscana. E é a partir dela que traça o perfil de uma cidade, como todas, nascida como fruto dos desejos e medos pessoais. Em outras palavras, as cidades se fazem como imagens do próprio homem — um covil de contrastes. Daí nascem todos os conflitos que moldam a literatura e o universo.