Contos são ótimas leituras. Assim como crônicas. Histórias curtas, mas saborosas, que podem ser descobertas assim, ao acaso. Pulando uma ou outra, para ler mais tarde. Sem nenhuma preocupação em quebrar o ritmo. Na fila do banco, no ponto do ônibus, em sala de aula, na poltrona da biblioteca, no banheiro, na cozinha, na praia — sob o guarda-sol e cheio de protetor nas bordas, porque o sol é impiedoso, mesmo com as histórias mais curtas.
Livros de contos — ou crônicas — são sempre interessantes. Se há 10, 12 historietas, uma, pelo menos, vai ser boa. Ou minimamente agradável. É que quando vamos ficando um pouco mais exigentes com o que botamos para dentro de nossas cabeças, alguns dos livros vão perdendo um pouco da cor, do sabor. Eu não sou uma leitora voraz ou estudiosa dos movimentos e gêneros e dialogismos, que Deus me livre. Mesmo assim — ou talvez por isso mesmo — nunca li um livro desses que não tivesse pelo menos uma historinha que se salvasse. Ou por uma idéia, ou pela forma como foi escrita.
Particularmente, sempre gostei mais dos textos simples, para esse tipo de narrativa. Prefiro a fluidez e a objetividade às infindáveis divagações-poemas que povoam alguns contos. Na maioria das vezes, pelo menos. Não que não aprecie a poesia das palavras. Pelo contrário. Só não gosto que se utilizem dela — da poesia — para fazer pretensiosos “livros-cabeça”. Que o todo-poderoso nos livre!
Li três livros de contos/crônicas, para esta edição do Rascunho. Completamente diferentes. O que dificulta qualquer tipo de comparação entre um e outro. As pernas da tia Corália é um leve livro de crônicas escrito pelo jovem Antonio Prata, de 25 anos; O último sábado é formado por 12 contos publicados em suplementos literários nacionais pelo veterano Orlando Bastos, de 82 anos; e Babel, é claro! é composto de contos/crônicas de Mara L. Rayel, de 40 anos. Os autores não têm proximidade etária e escrevem de formas absolutamente diversas. O único ponto em comum é a “temática”. Escrevem sobre o cotidiano — mas sobre cotidianos em épocas diferentes, com escolhas de palavras totalmente opostas, assim como os sensos de humor.
Comecei minha leitura pelo mais leve — o que foi um erro, na verdade (deveria tê-lo deixado por último, para aliviar a cabeça cheia depois de ler os outros dois). As pernas da tia Corália é um livro totalmente despretensioso e divertido, na maioria das vezes. Não é nenhuma obra-prima da literatura humorística, mas não chega a fazer feio. Poderia ser melhor se algumas das histórias tivessem amadurecido mais, antes de publicadas. Mas, no geral, é bom. Traz divertidas histórias sobre banalidades. A primeira, que já mostra ao leitor exatamente que tipo de livro está prestes a ler, é Reflexões sobre a planta ovo: um babaganuch existencial: divagações sobre a berinjela, uma espécie de “pepino com as bochechas infladas, ou uma abobrinha segurando a respiração” (p. 4). Engraçadinha.
Em todo o livro, o autor aborda situações corriqueiras e de puro nonsense. Ele põe no papel teorias das mais esdrúxulas — com certeza, qualquer pessoa já teve uma dessas. Por exemplo: em Hipótese, Prata teoriza sobre a possibilidade de uma pessoa nunca ter conhecido (visto, cheirado, apalpado) uma maçã. “[…] Para que fosse possível alguém passar boa parte da vida na total ignorância desse fruto, seria necessário um plano prévio por parte dos pais, um meticuloso acompanhamento e somas incríveis de tempo, dinheiro e atenção. […] Dada a dificuldade de se esconder as maçãs da criança, talvez o mais fácil fosse […] esconder a criança das maçãs: pai, mãe e bebê mudam-se para uma choupana no meio do Congo, sem rádio, sem tevê, sem vizinhos, nada. […]” (p. 39) Mas há muitas outras histórias de teorias sem pé nem cabeça. Ou cabelos, como em Terça-feira de manhã, em que toda a população mundial amanhece careca. Com exceção do ex-governador de Santa Catarina Esperidião Amin que, espantosamente, acordou com uma gigantesca cabeleira ruiva. Uma das histórias mais divertidas é Campeonatinho, que aborda uma espécie de neurose. O personagem conta que faz campeonatos com ele mesmo. Por exemplo: se está passando de carro, aposta que, se passar até o sinal amarelar, “vai chover no churrasco de domingo”. Se a moça não jogar o cigarro até que ele entre no cursinho, passará no vestibular. Coisas assim. Basicamente, portanto, é um livro para diversão pura e simples. O que é uma coisa boa, não me entendam mal, por favor. É um bom livro.
Já O último sábado, de Orlando Bastos é um pouco mais elaborado. Com um senso de humor muito mais “apurado”, se é que se pode dizer isso. Quero dizer: não é um humor fácil, simples, direto. Tem outras nuances. Tem a cor e a graça dos causos divertidos, contados por alguém com experiência — de vida, de escrita. As histórias parecem aquelas contadas em tardes de sol, na varanda, pelo avô. Têm esse tipo de humor: de avô.
No conto que dá nome ao livro, um homem conjectura com seus botões: acha que a mulher o trai com um amigo, que os visita todos os sábados. E, para os curiosos, se trai ou não, não vem ao caso. Se é invenção da cabeça do homem, não interessa. O que interessa é o desabafo. Como todo mineiro que se preze, Bastos é contador de histórias fantásticas. E inventor de palavras. Inventor não é bem o termo exato. Seus personagens, talqualmente Odorico Paraguaçu, são cheios de “boquiabrimentos”, tirantes e segredamentos. Expressões que reforçam aquela fala mansinha, bem comuns aos contadores de causo em varandas em dias de sol.
Os contos, irônicos e bem humorados, são de leitura fácil. Um dos melhores é O passageiro do Caronte, sobre um homem, cansado de guerra, que planeja sua morte. Sai distribuindo dinheiro pela cidade, mas sem esquecer de levar um pouco para a passagem pelo Caronte, lá no outro mundo. O que deveria ser um segredo, acaba se tornando um evento na cidade.Tanto que até mesmo a charanga acompanha o féretro pelo cemitério da cidade. “De volta à camioneta, notou a crescente movimentação do povo, todas as atenções concentradas em sua pessoa. Todavia, ninguém dava um passo nem mostrava intenção de dissuadi-lo do plano […] Era um espetáculo merecedor de aparecer com letras graúdas nos jornais do mundo inteiro, embora fosse desejo dele que tudo ocorresse sem rumor nem lavarinto. E o filho duma égua do Zé Carapina roendo a corda, divulgando o evento! […]” (p. 45)
O único problema de minha leitura foi o último livro que li: Babel, é claro. Como já disse, gosto de histórias interessantes e nunca fui muito fã de divagações-poemas. E aí a porca torceu o rabo. O livro de Mara Rayel segue por essa linha. Senão, vejamos o prefácio: “Através das partículas do vídeo feito em folha de papel vejo, como última miragem, meu caldo interno roçar as pontas dos dedos. Letras. Rasgo. E não escorre sangue. P que sai é matéria gaseificada. Como anular o pó que meu sangue insiste em ser? Como escapar da fenda que faço? Faca. Afio sempre.” (p. 10) Se o prefácio é assim, imagine o restante do livro.
Há quem goste, porém. Eu imagino que alguns atores/diretores de teatro tenham gostado do livro. Em alguns dos contos, cheguei a imaginar, o palco nu (que é mais cult), uma mulher de roupas brancas, os cabelos desgrenhados e uma maquiagem pesada, como nos filmes expressionistas, gritando: “Espaços turvos que escondem minas de carvão entre as dobras labaredas das entranhas pedras negras escuras de carvão. Sofreguidão, sofreguimento algo túrbido, desconhecidos enlaces entre curvas. O que não gera, próximo do profícuo, o que estéril solitude nas paredes em vértice em vermelho seiva sempre vinho.[…]” (p. 26, em Menstruação) Se fossem apenas alguns poucos contos escritos dessa forma… Mas são quase todos, dos 25 que compõem o livro.
Há, como já disse, sempre alguma coisa boa em livros de contos. Neste caso, é Infância, em que Mara traz uma história um pouco mais lírica, não tão cheia de “reentrâncias” e viagens. Mais uma vez, alerto: essa é a opinião de uma leitora que não gosta de livros que de poesia-divagação/prosa-visual ou qualquer coisa nesse sentido. De uma leitora que não gosta de Tribalistas. Se eu gostasse, talvez apreciasse melhor o livro. E, se fosse Carlinhos Brown, talvez musicasse o conto Vapores: “Redonda a lua rósea que esculpida borda em dígito a outra extremidade. Hálux. Com a concavidade escura e líquida envolvo a tua lua e carne entre meus dentes e língua. Hálux. […]” (p. 32). Seria um sucesso.