Cosmologia literária

Alberto Manguel investiga as metáforas usadas desde a antiguidade para descrever leitores e leitura
Alberto Manguel, autor de “O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça”
01/08/2018

“Dizem que o importante é a vida, mas eu prefiro ler”, escreveu o ensaísta e crítico americano Logan Pearsall Smith há mais de 100 anos. É uma epígrafe no livro-ensaio O leitor como metáfora — o viajante, a torre e a traça. O autor, Alberto Manguel, nascido na Argentina e hoje cidadão canadense, abandonou o banco da universidade e desde então dedica-se à leitura de livros e à leitura da leitura. Passou anos em Israel, na Inglaterra, no Taiti, na França, no Canadá e na Argentina É autor de dezenas de obras, tradutor, jornalista e até recentemente diretor da Biblioteca Nacional da Argentina.

Nos anos 1960, enquanto sua geração protestava nas ruas contra a burguesia que viria a se tornar, o jovem Alberto, de família abastada (seu pai era embaixador) ia da escola ao trabalho, na Livraria Anglo-germânica Pigmalion, onde conheceu e começou a ler para Borges, então já perdendo a visão. Foram anos de leituras, conversas, passeios pela cidade. Até hoje, em tudo que escreve, Manguel conserva essa alegria na riqueza da literatura. Ao todo, publicou seis romances, 22 antologias e 18 livros de não ficção em linguagem acessível ao público não acadêmico, sem, no entanto, sacrificar uma só referência, por mais obscura ou erudita.

Em O leitor…, investiga quais são as metáforas que têm sido usadas desde a antiguidade para descrever leitores e leitura. O livro foi composto a partir de três palestras apresentadas na Universidade da Pensilvânia em 2011. Trata-se de um desdobramento de seu livro de 1996, Uma história da leitura, uma análise profunda do pensamento ocidental acerca da leitura. São três metáforas: o viajante, ou a viagem remete à leitura e à vida; a torre corresponde ao isolamento imposto pelo ato de ler e pelo conhecimento; a traça representa o leitor obsessivo, cujo corpo deixa de ter suas funções vitais e passa a operar como extensão dos livros.

O livro começa com uma imagem do século 12, O homem cósmico, ilustração de Hildegard von Bingen, que ali representa o estudo da criação como um todo que deveria revelar sua ordem inerente, a cosmologia. “Até onde sabemos, somos a única espécie para a qual o mundo parece ser feito de histórias.” De histórias para a literatura foi um pulo — bem, de milhares de anos. O ato de criar um texto sobre uma página em branco remete à criação do universo no vazio. O fato é que as sociedades literárias muito cedo criaram a noção do mundo como um livro que se pode ler e interpretar, uma cosmologia literária. Ademais, desde os primórdios ficou clara a vantagem moral da literatura de permitir ao leitor compreender o que significa ser outro sem acreditar que é o outro.

Manguel analisa as figuras do viajante, a torre e a traça com o olhar literário e histórico. Algumas referências a essas metáforas, que parecem extraídas do nosso cotidiano do século 21, são surpreendentemente antigas, até milenares, mas ao longo do tempo varia o julgamento que pesa sobre o leitor retratado pela metáfora. A viagem pelos livros já foi vista como virtuosa, uma peregrinação, mas também como caminho da perdição. Isolar-se em uma torre de marfim para dedicar-se à leitura pode ser próprio do sábio, do conselheiro, ou contrariamente, do alienado, parasita da sociedade. Devorar livros, como faz a traça, tem sido visto como a busca do conhecimento mas pode degenerar em obsessão estéril.

Muitos exemplos são construídos ao redor de imagens que variam de quadros de Hieronymus Bosch (século 16), esboços de Franz Kafka (século 20), fotos de atores que protagonizaram Hamlet na década de 1930, até um selo de jadeíta esculpido há mais de 4.000 anos mostrando Gilgamesh em luta com um leão. O texto em si é acessível mas pressupõe uma familiaridade com o cânone da literatura mundial, incluindo Cícero, Agostinho, a Bíblia, Dante, Shakespeare, Cervantes e Flaubert. O leitor é desafiado a pesquisar por conta própria, mas o autor tem a virtude de não se perder em delírios acadêmicos. O tom de conversa com pausas para reflexão e encadeamento lógico conservam o texto fiel ao clima de conferência em que foi proferido, sem perder o “contato visual” com o leitor. A tradução de José Geraldo Couto captou perfeitamente o equilíbrio entre conferência e texto, valorizado pelo projeto gráfico sofisticado da edição.

Bem precioso
No Capítulo 1 (O leitor como viajante — a leitura como reconhecimento do mundo), Manguel utiliza uma iluminura francesa do século 15 onde se vê o bebê Moisés atado a seu berço, que é de fato um livro. A seu lado, sua irmã Miriam o observa — ou adora — de mãos postas, um gesto cristão em uma cena notoriamente oriunda da Torá, ou Velho Testamento, o livro sagrado dos judeus. O berço que é um livro que viaja pelo rio é uma representação do livro como veículo que permite que a palavra de Deus viaje pelo mundo, ideia milenar de origem na cultura judaica, adotada também pelo cristianismo. O termo “povo do livro” aparece pela primeira vez no Qorão (século 7) em referência aos judeus e sua Torá, levada por eles a todos os cantos do mundo na diáspora. Os babilônios e mais tarde os romanos destruíram o Templo de Jerusalém, mas não puderam impedir os cativos de levar consigo no exílio seu bem mais precioso, de traduzi-lo e reproduzi-lo. Um drible na censura, talvez o mais bem-sucedido da história: a Bíblia é o livro mais lido no mundo.

O leitor viaja por sua vida como se lê um livro: as páginas lidas ficam no passado; a página do presente é a leitura que se desdobra nas mãos do leitor; as páginas a serem lidas são o futuro incerto. Somente no silêncio pode-se viajar a sós, e é isto que Manguel reivindica: a introspecção na leitura, assim como na vida. Aí está a diferença entre narrativa oral e narrativa escrita: “escutar é principalmente um esforço passivo, a leitura é um esforço ativo, como a viagem”.

O risco para o leitor abnegado é que passe a viver na imaginação e não no terreno. Hamlet, um dos personagens mais icônicos de toda a literatura, é esse leitor que vive na torre de marfim, um recluso que paga com a vida o preço de não a viver plenamente. Shakespeare não cursou uma universidade, mas seu maior concorrente, Christopher Marlowe, formou-se em Cambridge. Fosse por convicção ou por despeito, o autor criou Hamlet refém de sua formação acadêmica:

Não é que Hamlet decida não agir; é que, empanturrado de ensinamentos acadêmicos, ele não se permite desaprender seu catecismo universitário e aprender daquilo de novo a partir da experiência factual daquilo que irrompeu subitamente em sua consciência; isto é, a aparição do fantasma…

Um Hamlet pasteurizado, sem qualquer traço de hesitação, foi “transcriado” na Alemanha nazista, onde a peça Hamlet foi encenada centenas de vezes com uma alteração: foram retiradas todas as falas que pudessem sugerir passividade do protagonista. O Übermensch do nazismo não cabia no modelo do estudioso introspectivo que ficaria feliz em viver dentro de uma “casca de noz” ou que acreditava que o paraíso deve ser uma biblioteca pessoal.

Alonso Quijano é outro personagem que se isolava na torre de marfim entre seus livros, visto como um louco. Segundo Manguel, sua “loucura” consiste em acreditar que são verídicos os relatos da ficção, mas é uma loucura louvável, porque o leva a sair ao mundo e lutar contra a hipocrisia da época. Quando o conhecimento proveniente desse isolamento não é aplicado ao mundo real, esse leitor transforma-se no “louco dos livros”, alienado da realidade que fatalmente irá devorá-lo. A figura do viciado em internet nada mais é do que um modelo contemporâneo desse louco. Pior, porque a tecnologia permite um fluxo contínuo de distrações, saltos e interrupções no pensamento que impedem qualquer aprofundamento.

Levado ao extremo, esse leitor isolado, obsessivo, transforma-se em uma traça de livros, devora palavras sem refletir. Fatalmente irá confundir a realidade com o que lê. Emma Bovary é uma traça de livros que se transforma em centro do seu próprio mundo. Tanto Bovary quanto Quijano começam a desassociar-se da realidade através da leitura, mas Emma ignora os problemas do mundo, reconhece apenas os seus.

Seguir o raciocínio de Alberto Manguel na conferência que deu origem a O leitor… pode ter sido desafiante por ser muita informação em ritmo acelerado, mas em livro impresso é possível ler e refletir aos poucos. Os capítulos são curtos e valorizam amplitude em vez de profundidade. O leitor se identifica com a voz do autor, as metáforas ficam cristalinas. Fiel ao que aprendeu com Borges, Manguel cita escritores esquecidos e livros perdidos na memória dos tempos, e cria mais uma obra que homenageia a leitura. A conclusão só poderia ser esta mesmo: ler para viver.

O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça
Alberto Manguel
Trad.: José Geraldo Couto
Edições Sesc
147 págs.
Alberto Manguel
Nasceu em Buenos Aires em 1948 e viveu em diversos países. É tradutor e jornalista. Publicou romances, contos, antologias e crítica literária e de cinema.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho